The Aces: o som que transformou o blues de Chicago

The Aces: o som que transformou o blues de Chicago



Um lugar entre o delta e a cidade

Há uma paisagem sonora que só existe quando o campo encontra o asfalto: é aí que começam as histórias dos irmãos Myers e do grupo que se fez espinha dorsal do blues elétrico de Chicago. The Aces não foram apenas uma banda de apoio; foram arquiteto e espelho de um som novo — onde o sopro do Mississippi se curvou à luz de postes e vitrines, e a batida ganhou precisão de relógio e balanço de salão.

As raízes: Byhalia, migração e o aprendizado das esquinas

Louis e Dave nasceram no Mississippi e chegaram a Chicago ainda jovens, trazendo no corpo o timbre da terra: as notas rudes do country blues, as frases reticentes da gaita e o gesto natural de quem aprendeu a tocar para ser ouvido numa calçada. A migração foi ponto de partida e de invenção — ali, o velho e o novo se encontraram. O movimento dos Myers representa, em pequena escala, a grande migração que redesenhou o mapa do blues americano.

Formação e identidade sonora dos Aces

O grupo passou por nomes e configurações — “Little Boys”, “Three Deuces”, “Three Aces”, até assumir o nome que ficaria gravado na história: The Aces. A formação clássica, com guitarra, baixo elétrico e bateria afiada, parecia simples na descrição, mas inventiva na prática. O pulso veio da bateria; o corpo, do baixo; as linhas de guitarra e gaita teciam as pequenas narrativas que fazia o público reconhecer uma canção ao primeiro acorde.

O encontro com Little Walter e a química que mudou tudo

Não é exagero dizer que a aliança com Little Walter foi decisiva. Nos estúdios e nas casas noturnas, The Aces funcionavam como motor: comprimiam as ideias, aceleravam o swing, davam espaço ao sopro e ao solo. Com Walter gravaram faixas que se tornaram referências — canções em que a gaita solava como quem conta um segredo e a seção rítmica empurrava o tempo como um trem em marcha. Foi nesse trabalho conjunto que a sonoridade do blues elétrico ganhou contornos mais urbanos e densos.

Contribuições técnicas e estilísticas

O papel de Dave Myers no baixo elétrico merece destaque: em uma época em que o instrumento ainda se consolidava no blues, ele ajudou a estabelecer o padrão de presença e sustento harmônico que hoje é dado como óbvio. A batida de Fred Below — com seu conceito quase jazzístico do back-beat — trouxe precisão e swing. Louis, com sua guitarra e eventualmente sua gaita, foi o elo que traduziu a urgência das ruas em frases musicais reconhecíveis. A soma desses elementos produziu o que hoje entendemos por “blues elétrico de Chicago” — uma música ao mesmo tempo crua e polida, íntima e estrondosa.

Carreiras individuais: 

Louis Myers

Louis era músico de essência. Após os anos de convivência com The Aces, atuou como sideman e gravou trabalhos em nome próprio. Sua trajetória mostra um músico que nunca buscou o brilho póstumo da fama, mas o gesto sincero do intérprete. Em seus discos solo — registros menos numerosos, porém de caráter direto — há vestígios daquela lição de cidade: tocar para comunicar, não apenas para impressionar. Louis levou consigo o refinamento das frases e a paciência do músico que sabe esperar a nota certa.

Vida e morte: nascido em setembro de 1929, Louis viveu décadas de palco e estúdio até falecer em setembro de 1994, deixando um legado que segue vivo nas gravações e nas referências dos que estudam o Chicago blues.

Dave Myers

Dave destacou-se pela ousadia técnica. Adotar o baixo elétrico num momento em que muitos ainda se apegavam ao acústico foi atitude de vanguarda — e consequência lógica de quem desejava fazer a seção rítmica soar maior, mais presente, como um alicerce palpável. Ao longo da carreira, Dave participou de inúmeras sessões e manteve atividade como referência local do baixo. Sua história é a de um músico que ajudou a “preencher” o som, que entendeu que o groove pode ser também narrativa.

Vida e morte: nascido em outubro de 1926, Dave continuou a trabalhar e gravar até as últimas décadas do século XX. Enfrentou desafios de saúde nos anos finais e faleceu no início dos anos 2000, deixando uma obra que é essencial para compreender a evolução do blues elétrico.

Fred Below

Ao lado dos irmãos Myers, **Fred Below** foi o coração rítmico dos Aces. Baterista de formação jazzística, ele trouxe para o blues um senso de tempo e balanço que transformou o gênero. Seu toque tinha leveza e precisão — fazia o shuffle respirar, dava forma ao espaço entre as notas. Below não batia: ele conversava com o tempo.

Antes de se juntar aos Aces, Fred serviu no exército e tocou em bandas militares, o que refinou sua técnica e disciplina. Quando voltou a Chicago, encontrou nos irmãos Myers o ambiente ideal para aplicar essa musicalidade estruturada, mas carregada de swing. Seu estilo redefiniu a bateria do blues moderno — o compasso mais leve, a marcação do hi-hat, o uso de síncope e o diálogo com o baixo elétrico de Dave criaram um padrão que seria imitado por gerações.

Fred Below também gravou com nomes como Muddy Waters, Chuck Berry e Howlin’ Wolf, consolidando-se como um dos bateristas mais requisitados da cidade. Sua batida é ouvida em clássicos como “Johnny B. Goode” e “Roll Over Beethoven”. Sem Fred Below, o ritmo do blues urbano talvez tivesse seguido outro caminho.

Vida e morte: Fred Below nasceu em 6 de setembro de 1926 e faleceu em 13 de agosto de 1988, em Chicago. Sua partida encerrou um capítulo essencial do blues elétrico, mas sua assinatura — o swing limpo e o pulso constante — permanece em cada músico que tenta fazer o blues caminhar sem perder o balanço.



Gravações e momentos decisivos

Embora The Aces nem sempre tenham buscado os holofotes como líderes, suas gravações como banda de apoio e os registros em que emanavam sua própria assinatura são preciosos. No estúdio com Little Walter e em apresentações ao vivo, eram notórios pela coesão: cada músico sabia exatamente quando ocupar o espaço e quando recuar. O efeito, para o ouvinte, era de completude — uma música que respirava como um único organismo.

O estilo: elegante e funcional

Uma das palavras que melhor descreve The Aces é “elegância”. Não se trata de superficialidade, mas de economia — poucos movimentos, todos precisos. A elegância deles vinha de tocar com intenção: o fraseado de Louis, o pulso de Dave, a bateria que pontuava sem excessos. Juntos, produziram um som que servia ao cantor, à canção e ao público, sem nunca roubar o protagonismo da história que a voz queria contar.

Legado e influência

O legado dos Myers e de The Aces não se reduz a datas ou a quantidades de discos; está na mudança de referência. Bandas subsequentes absorveram a lição técnica e estética — o baixo firme, a bateria com swing jazzado, a guitarra que sabe recuar. Esses elementos se tornaram regra no blues urbano, e a influência dos Aces pode ser rastreada em muitos registros posteriores.

Memória e reconhecimento

Com o tempo, a história oficial devolveu ao grupo e aos irmãos um lugar de honra. Pesquisadores, fãs e músicos citaram repetidamente a importância de The Aces nas conversas sobre como o blues pós-guerra se reuitilizou para as salas de gravação e para as pistas das casas noturnas. Além disso, a lembrança pessoal de quem os ouviu ao vivo — relatos de conjuntos que soavam como relógios bem regulados — segue sendo um testemunho vivo do impacto que tiveram.

O espírito que permanece

Os irmãos Myers e The Aces representam uma confluência rara: a disciplina de um grupo de backing band e a inventividade de músicos que, na prática, escreveram parte da história do blues elétrico. Seus nomes podem não figurar nas capas mais vistosas, mas estão gravados nas entranhas do som que atravessou décadas e continua a inspirar. Se o blues é a música de quem se move entre o silêncio e a fala, The Aces foram os tradutores sutis dessa linguagem — e os irmãos Myers, seus intérpretes mais fiéis.


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