John Campbell: o blues selvagem de um crente solitário

John Campbell: o blues selvagem de um crente solitário



Há artistas que parecem nascer com o relógio da vida adiantado, como se soubessem que teriam pouco tempo para deixar sua marca. John Campbell foi um desses espíritos ardentes — um homem que fez do blues uma confissão, uma prece e um grito noturno. Sua guitarra soava como se fosse feita de relâmpagos e feridas abertas. E sua voz, rouca e incendiada, trazia o peso de séculos de sofrimento e redenção.

O fogo começou cedo

Nascido em 1952, em Shreveport, Louisiana, John Campbell cresceu cercado por música. Ainda criança, aprendeu a tocar violão, e aos treze anos já se apresentava em bares locais. Mas foi no final da década de 1970, após um acidente de carro que quase lhe custou a vida e comprometeu permanentemente sua visão, que Campbell mergulhou de corpo e alma no blues. A tragédia, como tantas vezes acontece nesse gênero, acendeu o fogo que o guiaria até o fim.

John carregava o espírito dos velhos mestres —Robert Johnson, Howlin’ Wolf, Son House —, mas transformava suas influências em algo próprio, feroz e moderno. Era um andarilho, um contador de histórias e um xamã elétrico. Com seu violão de aço ressoando como trovão, ele fazia o blues soar perigoso novamente.

O crente e o marginal

Antes de assinar com uma grande gravadora, Campbell viveu como um verdadeiro peregrino do blues. Viajou pelos Estados Unidos em uma velha van, tocando onde o deixavam subir no palco, dormindo em motéis baratos, vivendo à margem e observando a América profunda que se esconde atrás dos letreiros de neon. Essa vivência moldou sua arte: crua, intensa, sem concessões.

O selo Elektra Records descobriu esse diamante bruto no início dos anos 1990 e lhe ofereceu o que seria sua chance definitiva. O primeiro fruto dessa parceria foi o álbum “One Believer”, lançado em 1991. O disco é uma explosão de fé e desespero. Canções como “Devil in My Closet” e “Ain’t Afraid of Midnight” mostram um artista em guerra com seus próprios demônios, mas também em comunhão com a força ancestral do blues.



One Believer: a redenção em chamas

Gravado com uma banda afiada e produção robusta, “One Believer” é uma declaração de identidade. John Campbell não buscava imitar os heróis do passado — ele os evocava. Sua voz rasgava o ar como uma prece embriagada, e sua guitarra, muitas vezes tocada com slide e dedos ensanguentados, parecia arrancar faíscas do inferno. Há em cada faixa uma urgência quase espiritual, como se ele tentasse salvar a própria alma nota por nota.

O álbum foi aclamado pela crítica, que o viu como um dos trabalhos mais intensos e autênticos do blues contemporâneo. Campbell mostrava que o gênero ainda podia ser perigoso, imprevisível, visceral. Era o oposto do virtuosismo polido — um retorno ao grito original, à carne viva da música.


Howlin Mercy: o uivo final

Dois anos depois, em 1993, John voltou ao estúdio para gravar “Howlin Mercy”, seu segundo e último álbum pela Elektra. E o título não poderia ser mais simbólico. É o uivo de um homem à beira do abismo, uma súplica e uma despedida.

As canções, como “When the Levee Breaks” e “Down in the Hole”, são rituais de exorcismo. O som é mais sombrio, mais denso, mais ritualístico. Há percussões tribais, riffs que soam como correntes arrastadas no chão e uma voz que parece vir do fundo da terra. É o blues reduzido à sua essência mais primitiva — um tambor de coração, um gemido de alma.

Pouco depois do lançamento do disco, John Campbell morreu repentinamente, em 13 de junho de 1993, aos 41 anos, vítima de um ataque cardíaco. Foi um golpe devastador para quem acompanhava aquele renascimento do blues no início dos anos 1990. Sua carreira havia durado o tempo de um relâmpago, mas o clarão foi suficiente para marcar o céu do gênero para sempre.



O eco de uma alma indomada

John Campbell nunca foi um músico de convenções. Ele acreditava que o blues era mais do que notas e acordes — era um estado de espírito, um modo de viver. E viveu assim: intensamente, perigosamente, fiel ao próprio chamado. Sua música continua ecoando como um trovão distante, lembrando que o blues verdadeiro não é feito apenas de técnica, mas de verdade.

Hoje, revisitar seus álbuns é como abrir uma velha bíblia queimada: há fogo, dor, fé e uma beleza terrível. “One Believer” é a iniciação; “Howlin Mercy”, o testamento. Entre um e outro, está toda a alma de John Campbell — o crente solitário que uivou contra o silêncio do mundo.

Em um tempo em que o blues se diluía em fórmulas previsíveis, Campbell devolveu-lhe a fúria e o mistério. E se o destino o levou cedo demais, é porque talvez o céu também precise de guitarristas que toquem como se o inferno estivesse logo atrás.


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Marcos Ottaviano And His Blues Band: 35 Anos de Carreira

Flaherty Brotherhood: O Coletivo do Deserto que Reinventa o Blues para o Século XXI

Ain’t Done With The Blues: Buddy Guy aos 89 Anos Ainda Toca com o Coração em Chamas