Skip James – O falsete que cortava mais fundo que uma lâmina

Skip James – O falsete que cortava mais fundo que uma lâmina



Há vozes que cantam. Há vozes que gritam. E há vozes que, como a de Skip James, deslizam feito lâmina fria, cortando fundo, deixando um silêncio pesado atrás de cada nota. Nehemiah Curtis “Skip” James não era um músico comum. Ele era um enigma — um homem que parecia ter vindo de outro tempo, trazendo nas mãos e na garganta um blues que soava como uma prece sombria, quase espectral.

O nascimento do Bentonia Blues

Nascido em 9 de junho de 1902, na pequena Bentonia, Mississippi, Skip cresceu entre a música da igreja, os cânticos de trabalho e a solidão das plantações. Foi nesse cenário que ele moldou seu estilo único, mais tarde conhecido como “Bentonia School” — uma abordagem do violão em afinação aberta de ré menor (D-minor tuning), que criava um som tenso, melancólico e quase hipnótico. Seu dedilhado era preciso, suas dissonâncias calculadas, e seu falsete parecia vir de um lugar onde o tempo se move mais devagar.

As gravações de 1931

Em fevereiro de 1931, Skip James viajou até Grafton, Wisconsin, para gravar para a Paramount Records. Foram registradas cerca de 18 faixas, incluindo pérolas como “Devil Got My Woman”, “Hard Time Killing Floor Blues”, “I’m So Glad” e “Cherry Ball Blues”. Essas músicas, vendidas em tempos de Grande Depressão, tiveram tiragem reduzida e pouca circulação. Mas quem as ouviu, jamais esqueceu.

O toque de Skip era elegante e sombrio. Sua voz, um falsete agudo e cristalino, contrastava com letras carregadas de tragédia. Era um blues sem pressa, sem concessões, feito para ser sentido, não apenas ouvido.



O sumiço e o reencontro

Com as vendas fracas e a economia colapsando, Skip abandonou a música e trabalhou em vários empregos, afastando-se completamente do circuito musical. Durante mais de três décadas, seu nome viveu apenas nas coleções de 78 rotações e nas conversas de colecionadores obcecados.

Foi no início dos anos 1960 que a história deu uma guinada. Em 1964, durante a febre de “redescoberta” dos velhos mestres do blues, o pesquisador John Fahey e outros aficionados o encontraram em um hospital, já com a saúde debilitada. Skip voltou a tocar em festivais de folk e blues, como o Newport Folk Festival, e passou a influenciar uma nova geração de guitarristas e cantores.

O impacto nas gerações futuras

Apesar de nunca ter buscado fama, Skip James deixou marcas profundas na música. Bandas como Cream regravaram “I’m So Glad” com energia explosiva, levando sua obra a públicos que talvez nunca tivessem ouvido falar dele. Sua forma de tocar e seu timbre vocal inspiraram nomes como Robert Johnson, Bonnie Raitt e Rory Block.

O chamado “estilo Bentonia” ainda ecoa entre músicos de blues acústico, com acordes tensos e clima quase litúrgico. É um som que não se presta a barulhos de salão ou festas — é música para a solidão, para noites frias, para quem carrega histórias pesadas.

As últimas notas

Skip James morreu em 3 de outubro de 1969, em Filadélfia, vítima de câncer. Tinha 67 anos. Sua produção em vida foi pequena, mas seu impacto foi imenso. Os discos originais da Paramount hoje são relíquias, e cada reedição é um convite para entrar nesse mundo de sombras, dedilhados sutis e vozes que parecem vir de muito longe.

Ouvir Skip James é mais do que ouvir blues. É entrar em contato com uma força antiga, crua, que não precisa de volume para ser devastadora. É um encontro com o silêncio entre as notas, com a dor que não se explica, apenas se sente.

Discografia essencial

  • 1931 Recordings – Paramount Records
  • Greatest of the Delta Blues Singers (1964)
  • Devil Got My Woman (1968)
  • Today! (1966)
  • The Complete Early Recordings (1994)

Curiosidades

  • O falsete de Skip James era tão singular que muitos músicos admitiam não conseguir reproduzi-lo.
  • O “estilo Bentonia” também é associado a outros artistas locais, como Jack Owens que já comentei por aqui, mas Skip foi o que o levou a reconhecimento mundial.
  • Suas letras misturam religiosidade e fatalismo, algo típico do blues do Mississippi, mas com um toque pessoal quase místico.

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