Dr. John: A Feitiçaria musical direto de Nova Orleans!

Dr. John: A Feitiçaria musical direto de Nova Orleans!




Quando se fala em Nova Orleans, é impossível não pensar no espírito livre, místico e musical que emana de suas ruas. E, se essa cidade pudesse escolher um embaixador sonoro para traduzir sua alma, esse nome seria Dr. John. Com sua voz rouca e carregada de mistério, sua persona mística e seu domínio das teclas, Dr. John foi uma entidade musical única, misturando o blues, o funk, o jazz e o rock com um tempero de vodu, folclore crioulo e tradição cajun. Ao longo de mais de cinco décadas, ele deixou um legado vibrante e inconfundível que atravessou as fronteiras dos gêneros e das gerações.

De Mac Rebennack a Dr. John: as raízes de um feiticeiro musical

Nascido Malcolm John Rebennack Jr., no dia 20 de novembro de 1941, em Nova Orleans, o futuro Dr. John cresceu cercado de música. Desde cedo, se apaixonou pelos sons que vinham dos clubes locais, das rádios e das ruas. Seu pai tinha uma loja de conserto de aparelhos eletrônicos e vendia discos, o que permitiu ao jovem Mac um contato privilegiado com os bastidores da indústria fonográfica. Começou sua carreira como guitarrista, mas um tiro na mão durante um episódio violento o forçou a mudar de instrumento e se dedicar ao piano. Essa transição foi providencial: o piano de Mac se tornaria um dos mais característicos e reverenciados do blues moderno. Ele foi fortemente influenciado por pianistas lendários como Professor Longhair, James Booker, Fats Domino e Huey “Piano” Smith, que moldaram seu estilo rítmico, sincopado e enfeitiçante.

O nascimento de uma lenda: Gris-Gris e o alter ego Dr. John

Foi nos anos 1960 que Mac decidiu adotar o nome artístico Dr. John, inspirado em uma figura histórica do século XIX conhecida como Dr. John Montaine — um curandeiro e praticante de vodu. A persona do músico ganhou forma definitiva com o álbum Gris-Gris, lançado em 1968, um disco que misturava psicodelia, percussão africana, cantos tribais e o espírito ancestral de Nova Orleans. Com esse trabalho, Dr. John se tornou um verdadeiro xamã musical, invocando atmosferas místicas, ritmos hipnóticos e letras cheias de magia, além de inaugurar um estilo performático que envolvia roupas chamativas, colares de ossos e pinturas faciais. A crítica ficou dividida no início, mas o tempo tratou de consagrar Gris-Gris como um dos álbuns mais inventivos da contracultura americana. O som parecia vir de um pântano encantado — uma viagem sonora entre o delta do Mississippi e um ritual vodu.

Entre o underground e o mainstream

Nos anos 1970, Dr. John ampliou seu público, mantendo suas raízes em Nova Orleans, mas incorporando elementos de soul, funk e rhythm & blues que o levaram para o radar da grande mídia. Em álbuns como Babylon (1969), Remedies (1970) e Sun, Moon & Herbs (1971), ele continuou a construir sua lenda com sonoridades densas, letras cheias de imagens simbólicas e um senso estético próprio. Foi em 1973 que Dr. John atingiu seu auge comercial e artístico com o aclamado In the Right Place, seu disco mais bem-sucedido e o que melhor sintetiza seu talento, sua identidade e seu legado.




In the Right Place: o feitiço que conquistou o mundo

In the Right Place foi lançado em 25 de fevereiro de 1973 pela Atco Records e produzido por ninguém menos que Allen Toussaint, um dos maiores gênios da música de Nova Orleans. A junção de Dr. John, Toussaint e a banda The Meters resultou numa química explosiva — um caldeirão de funk grooveado, letras espirituosas e arranjos magistrais. O disco começa com o maior sucesso da carreira de Dr. John: "Right Place, Wrong Time", um funk irresistível com letra enigmática e batida contagiante. A música chegou ao 9º lugar na Billboard Hot 100 e se tornou um hino da década. É a porta de entrada para um álbum que pulsa com ritmos dançantes, sensualidade e misticismo. Entre os destaques, estão: “Such a Night”, que anos depois seria eternizada na performance de despedida da The Band em The Last Waltz, dirigido por Martin Scorsese. Uma canção leve, com suingue contagiante e um clima de romance tropical. “Same Old Same Old” e “Qualified”, que mostram a verve afiada de Dr. John como letrista, flertando com o sarcasmo e a crítica social. “I Been Hoodood” e “Shoo Fly Marches On”, que retomam a atmosfera de encantamento e ancestralidade dos primeiros discos. A produção de Allen Toussaint é de uma elegância rara: teclados sedosos, sopros milimetricamente encaixados, grooves irresistíveis da cozinha dos Meters (George Porter Jr. no baixo, Zigaboo Modeliste na bateria, Leo Nocentelli na guitarra e Art Neville nos teclados). Com esse disco, Dr. John saiu do gueto cult e foi parar nas rádios e turnês nacionais, sem jamais diluir sua essência. O disco ficou 33 semanas nas paradas da Billboard, chegando ao 24º lugar geral — um feito raro para um artista tão excêntrico e visceral.

A vida após o ápice

Depois do sucesso de In the Right Place, Dr. John manteve uma carreira ativa e diversificada. Lançou o álbum Desitively Bonnaroo (1974), outro belo trabalho com Allen Toussaint e os Meters, que deu origem ao nome do famoso festival Bonnaroo, no Tennessee. Nos anos seguintes, gravou álbuns com foco no jazz, como Dr. John Plays Mac Rebennack (1981), e se firmou como uma figura respeitada da música americana. Participou de discos de artistas como The Rolling Stones, Van Morrison e Aretha Franklin, além de gravar trilhas para cinema e televisão. Em 1992, lançou o excelente Goin’ Back to New Orleans, que lhe rendeu o Grammy de Melhor Álbum de Música Tradicional. Esse trabalho é uma homenagem explícita à sua cidade natal, trazendo clássicos do repertório local com arranjos poderosos e participações de lendas como Danny Barker e Alvin “Red” Tyler.

O reconhecimento em vida

Dr. John nunca buscou o estrelato nos moldes tradicionais. Preferia os bastidores, os clubes esfumaçados e a fidelidade ao som de sua terra. Mesmo assim, foi aos poucos sendo reconhecido como uma das figuras mais autênticas da música americana. Em 2011, foi incluído no Rock and Roll Hall of Fame, ao lado de artistas como Neil Diamond e Alice Cooper. No mesmo ano, lançou o aclamado Locked Down, produzido por Dan Auerbach (The Black Keys), que modernizou seu som sem descaracterizá-lo. O disco venceu o Grammy de Melhor Álbum de Blues Contemporâneo. Até os últimos anos de vida, continuou se apresentando com vigor e gravando com paixão. Seu último álbum em vida foi Ske-Dat-De-Dat: The Spirit of Satch (2014), uma homenagem a Louis Armstrong.

A despedida de um espírito indomável

Dr. John faleceu em 6 de junho de 2019, aos 77 anos, vítima de um ataque cardíaco. A comoção foi imediata. Nova Orleans parou para celebrar seu filho mais místico e talentoso. Desfiles em sua homenagem tomaram as ruas, com brass bands tocando suas músicas e fãs dançando sob o sol quente do sul. Sua última gravação, lançada postumamente em 2023, foi o álbum Things Happen That Way, um disco introspectivo, onde ele mergulha no country, no gospel e no blues, se despedindo com dignidade e beleza.

O legado de Dr. John

Dr. John foi mais que um músico. Ele foi um símbolo. Um canalizador do espírito ancestral de Nova Orleans. Um alquimista sonoro que uniu o tradicional e o moderno, o sagrado e o profano, o swing e o feitiço. Suas canções continuam vivas em filmes, séries, festivais e playlists. Seus discos são estudados por músicos, amados por colecionadores e celebrados por fãs de todas as idades. Mais do que isso, ele representou uma forma de estar no mundo — livre, criativa, orgulhosamente fora do padrão. O blues, o funk e a música americana jamais serão os mesmos após a passagem desse mestre. E para quem quiser entender o que é o groove, a alma e o espírito de Nova Orleans, basta colocar In the Right Place para tocar e deixar o corpo ser possuído pelo ritmo. 
 

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