Howlin’ Wolf em Londres: quando o blues de raiz abalou a realeza do rock

Howlin’ Wolf em Londres: quando o blues de raiz abalou a realeza do rock



A voz que rugia do Delta para o mundo

Chester Arthur Burnett nasceu em 10 de junho de 1910, em White Station, no coração do Mississippi, terra fértil para o nascimento do blues. Alto, imponente e com uma voz que parecia vir das entranhas da terra, ele viria a se tornar conhecido como Howlin’ Wolf — um nome que definiria sua personalidade musical: bruta, primitiva e absolutamente autêntica.

Sua infância foi marcada por dificuldades e trabalho duro nas plantações. Expulso de casa pela mãe ainda criança, foi criado por um tio rígido. Mas foi na adolescência que sua vida mudou: ele conheceu Charley Patton, o patriarca do Delta Blues, que o ensinou a tocar violão e a cantar com alma. Patton, com sua mistura de técnica rústica e presença hipnótica, deixou uma marca profunda. Howlin’ Wolf, em suas próprias palavras, dizia: “Eu não sou um cantor. Eu sou o blues”.

De Memphis a Chicago: a metamorfose do lobo elétrico

Na década de 1940, Wolf serviu ao Exército e passou a se apresentar em estações de rádio locais no Sul. Foi em Memphis, com o apoio do DJ Sam Phillips — o mesmo que mais tarde lançaria Elvis Presley — que ele gravou seus primeiros singles. Phillips logo percebeu: “Essa é a voz mais poderosa que já gravei.”

As gravações chamaram atenção da Chess Records, de Chicago. Leonard e Phil Chess garantiram sua mudança para o Norte, e com ela, o nascimento de um novo som: o blues elétrico de Chicago. Lá, Howlin’ Wolf encontrou sua banda ideal e gravou clássicos imortais como:

  • Smokestack Lightnin’
  • Killing Floor
  • Back Door Man
  • Spoonful

Essas faixas definiram o som urbano do blues dos anos 50 e 60. Com sua voz de trovão e performances teatrais — rastejando no palco, rosnando e suando feito um demônio possuído — ele se tornou um dos maiores artistas da gravadora, ao lado de Muddy Waters.

Willie Dixon: encontros, atritos e genialidade

Grande parte dos sucessos de Howlin’ Wolf tem a assinatura do lendário compositor e contrabaixista Willie Dixon. Foi ele quem escreveu músicas como Evil, Spoonful e Little Red Rooster, moldando a sonoridade e a mensagem do lobo.

Mas a relação entre os dois não era fácil. Wolf era um perfeccionista e exigente nos arranjos. Frequentemente discordava das letras ou da forma como Dixon queria conduzir as sessões. Os embates em estúdio se tornaram lendários — mas o resultado sempre foi brilhante. O atrito criativo entre ambos gerou alguns dos maiores momentos do blues gravado.



Discos essenciais: o uivo em vinil

Em 1959, a Chess lançou Moanin’ in the Moonlight, uma coletânea com algumas de suas primeiras gravações. Já em 1962, chegou às lojas aquele que muitos consideram seu disco definitivo: Howlin’ Wolf, também conhecido como The Rocking Chair Album por causa da capa. Com faixas como Shake for Me, Wang Dang Doodle e Little Baby, o disco é uma aula de blues elétrico, com a guitarra cortante de Hubert Sumlin, seu parceiro inseparável.

Esses discos pavimentaram o caminho para a admiração internacional que o blues começava a conquistar, especialmente na Inglaterra.



O blues conquista a rainha: as Sessions de Londres

No fim dos anos 1960, o mundo do rock britânico olhava para os mestres do blues com reverência quase religiosa. Bandas como The Rolling Stones, Led Zeppelin e artistas como Eric Clapton não apenas bebiam dessa fonte — eles se ajoelhavam diante dela.

Foi nesse contexto que, em maio de 1970, a Chess Records organizou uma das sessões mais históricas do blues: The London Howlin’ Wolf Sessions. A ideia era simples, mas ousada: reunir Howlin’ Wolf com músicos britânicos que haviam sido profundamente influenciados por ele.

Os dias em que Londres tremeu

O projeto foi conduzido pelo produtor Norman Dayron, que contou com o apoio de Clapton. Quando a Chess hesitou em pagar a viagem de Hubert Sumlin, foi Clapton quem bateu o pé: “Sem Sumlin, sem eu.” Resultado? Hubert embarcou com Wolf para Londres.

As sessões começaram em 2 de maio de 1970, no Olympic Studios. Entre os músicos envolvidos estavam:

  • Eric Clapton (guitarra)
  • Bill Wyman e Charlie Watts (baixo e bateria dos Rolling Stones)
  • Ian Stewart (piano)
  • Steve Winwood (órgão)
  • Ringo Starr (bateria, em algumas faixas)
  • Jeff Carp (harmônica)

Mesmo diante da elite do rock, foi Wolf quem comandou a sessão com autoridade. Clapton chegou a recuar dos solos em deferência a Hubert Sumlin, declarando: “Ele sabia as partes, e eu não.”

As faixas gravadas incluíram novas versões de I Ain’t Superstitious, Sittin’ on Top of the World e Rockin’ Daddy, além de jams inéditas como Do the Do e What a Woman!

Recepção e impacto

Lançado em agosto de 1971, The London Howlin’ Wolf Sessions não foi um sucesso comercial retumbante — alcançando o #79 na Billboard 200. Mas sua importância histórica foi instantaneamente reconhecida. Críticos o descreveram como “um dos melhores registros tardios de Wolf” e “uma ponte vital entre o blues de raiz e o rock moderno”.

Em 2003, o álbum foi relançado em edição deluxe, com faixas bônus e material inédito, chegando ao #6 da parada de blues da Billboard. Mais importante: inspirou uma geração de jovens ouvintes a buscar a fonte original daquele som cru, intenso e visceral.

Legado: o uivo que nunca silenciou

Howlin’ Wolf faleceu em 10 de janeiro de 1976, em Chicago. Mas sua presença continua viva nas guitarras de Clapton, no peso do Led Zeppelin, no ritmo do Stones e na garganta de cada cantor de blues que ousa rasgar a alma em uma nota grave.

Ele era mais do que um artista. Era um fenômeno. Um vulcão em erupção que levou o blues do Delta até os grandes palcos do mundo — sem nunca perder a essência.


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Marcos Ottaviano And His Blues Band: 35 Anos de Carreira

Nuno Mindelis: Blues, não só para o Brasil!

Jimmy D. Lane: um herdeiro do blues de Chicago