James Booker: o gênio indomável do piano de Nova Orleans
James Booker: o gênio indomável do piano de Nova Orleans
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| Lionel DECOSTER CC BY SA |
James Booker foi um daqueles artistas que parecem carregar uma cidade inteira dentro de si. No seu piano conviviam o blues mais cru, o jazz sofisticado, a música clássica europeia, o gospel e o rhythm and blues de rua. Tudo ao mesmo tempo. Tudo em conflito. Tudo verdadeiro. Pianista virtuoso, compositor singular e figura profundamente atormentada, Booker viveu à margem do sucesso que seu talento anunciava, deixando como legado uma obra intensa, fragmentada e absolutamente única.
Em uma das descrições mais contundentes já feitas sobre ele, Dr. John definiu James Booker como “o melhor gênio negro, gay, caolho e viciado em drogas que Nova Orleans já produziu”. A frase é dura, direta e reveladora — assim como a própria música de Booker.
Um prodígio marcado pela dor
Nascido em 1939, em Nova Orleans, James Carroll Booker III cresceu em um ambiente onde a música era tão natural quanto o ar quente e úmido da Louisiana. Ainda criança, demonstrava uma habilidade impressionante ao piano, capaz de executar peças clássicas com a mesma desenvoltura com que improvisava blues e boogie-woogie.
Aos poucos, Booker construiu uma linguagem própria, fundindo Chopin e Rachmaninoff com Professor Longhair, Fats Domino e os cânticos da igreja. O resultado era um som elegante e caótico, técnico e emocional, impossível de ser rotulado.
Mas a genialidade precoce veio acompanhada de sombras. Um tiro acidental — em circunstâncias nunca totalmente esclarecidas — fez com que perdesse a visão de um dos olhos. A partir daí, sua relação com a dor física e emocional se intensificou, assim como seu contato intermitente com a heroína.
O músico dos músicos
Ao longo dos anos 1960 e 1970, James Booker tornou-se um pianista requisitado por artistas de diferentes universos. Acompanhou nomes que iam do rock ao soul, do R&B ao pop, trabalhando com Little Richard, Aretha Franklin, Ringo Starr, The Doobie Brothers e muitos outros.
Apesar dessas colaborações de alto nível, Booker jamais se encaixou na lógica da indústria. Ele não se moldava a horários, contratos ou expectativas comerciais. Era imprevisível, intenso, muitas vezes ausente — mas quando sentava ao piano, tudo fazia sentido.
Seu verdadeiro território de liberdade era o piano solo. Ali, sem concessões, Booker se transformava em orquestra, em coral, em rua e em igreja. Cada apresentação era única, frequentemente começando com uma peça clássica, deslizando para um blues profundo e explodindo em improvisos que desafiavam qualquer noção de forma.
Gênio, marginal e sobrevivente
James Booker viveu grande parte de sua vida à margem. Morava em condições precárias, muitas vezes dependente da ajuda de amigos e músicos da cena de Nova Orleans. Seu vício em heroína nunca foi constante, mas sempre rondava, reaparecendo nos momentos de maior fragilidade.
Essa luta interna se refletia diretamente em sua música. O piano de Booker não buscava conforto; buscava verdade. Era música que sangrava, que rezava, que provocava. Em um mesmo acorde, ele podia soar como um virtuose clássico e, no instante seguinte, como um pianista de bar tocando para espantar fantasmas.
Sua identidade — como homem negro, gay e profundamente sensível — também contribuiu para seu isolamento em uma época pouco tolerante com diferenças. Booker nunca pediu permissão para existir. Ele simplesmente existia, com todas as contradições que isso implicava.
Os últimos anos e a despedida silenciosa
Na década de 1980, a saúde de James Booker se deteriorou rapidamente. Problemas renais, infecções recorrentes e o desgaste de uma vida sem cuidados constantes cobraram seu preço. Mesmo assim, ele continuava tocando sempre que podia, muitas vezes em pequenos clubes, para plateias reduzidas, mas profundamente impactadas.
James Booker morreu em 1983, aos 43 anos, em um hospital público de Nova Orleans. Sua morte passou quase despercebida fora do círculo musical, mas deixou um vazio imenso entre aqueles que compreenderam sua importância.
O legado de um piano sem fronteiras
Hoje, James Booker é reconhecido como um dos pianistas mais originais da história da música americana. Sua obra continua sendo descoberta, estudada e reverenciada por músicos que enxergam nele uma ponte viva entre o blues, o jazz, a música erudita e a alma de Nova Orleans.
Booker não deixou uma discografia extensa nem hits radiofônicos. O que deixou foi algo mais raro: uma maneira absolutamente livre de tocar e sentir o piano. Um som que não pedia compreensão imediata, mas entrega total.
Booker em estado bruto: o piano no limite da improvisação
Escolhi destacar o álbum Gonzo: Live 1976 porque ele traz James Booker no auge absoluto de sua capacidade de improvisação, registrado ao vivo em apresentações realizadas ao longo de 1976, pela RockBeat Records, quando seu piano atingia um estado de liberdade quase selvagem. Lançado oficialmente apenas em 2014, o disco reúne uma extensa coleção de gravações ao vivo organizadas em um álbum duplo, com 37 faixas e mais de duas horas de duração, oferecendo um retrato raro e aprofundado de Booker em plena ação. Livre das limitações do estúdio, ele percorre blues, jazz, rhythm and blues, música clássica e canções tradicionais com uma fluidez desconcertante, alternando delicadeza, fúria e humor em interpretações sempre imprevisíveis. O repertório inclui versões dilacerantes de temas como Junco Partner, Classified, Stormy Monday, Please Send Me Someone to Love, Tico Tico e variações expansivas sobre Gonzo, seu tema recorrente, transformando cada execução em um exercício de risco e invenção. Mais do que um simples registro histórico, Gonzo: Live 1976 documenta um momento em que o gênio de Booker parecia indomável, fazendo do álbum uma das mais completas e reveladoras experiências ao vivo de sua carreira.
James Booker foi, acima de tudo, um artista impossível de domesticar. E talvez por isso mesmo, eterno.


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