Fiona Boyes: a australiana que fez do blues um passaporte para o mundo

Fiona Boyes: a australiana que fez do blues um passaporte para o mundo



Há artistas que caminham pelo blues como quem atravessa uma ponte antiga. Outros o tratam como rio, correnteza, destino. E há aqueles — raros — que chegam de longe, atravessam oceanos e, ainda assim, parecem carregar em suas mãos o barro vermelho do Mississippi. Entre esses poucos escolhidos está Fiona Boyes, a guitarrista australiana que transformou sua paixão tardia pela música em uma das carreiras mais respeitadas do blues contemporâneo.

A descoberta tardia e o chamado do blues

Fiona não nasceu cercada por guitarras, bares esfumaçados ou jukeboxes. Aprendeu a tocar apenas na vida adulta, quando já acumulava algumas histórias e percebia que algo dentro dela pedia outra direção. O blues apareceu como epifania — uma ferida antiga que, de alguma forma, falava também da sua vida. E, como um imã, arrastou-a para dentro de uma tradição que ela se dedicou a estudar com devoção quase religiosa.

Logo passaram a chamá-la de “a australiana com alma do Delta”. E não era exagero. Com a mesma naturalidade com que algumas pessoas respiram, Fiona alternava entre o violão fingerstyle, a elétrica rasgando solos crus, e instrumentos pouco comuns, como cigar-box guitars, que reforçavam seu gosto pela estética rústica, áspera, primitiva — aquela que remete aos pátios de terra batida do sul dos Estados Unidos.

O mundo conheceu seu nome

A grande virada veio em 2003, quando venceu o International Blues Challenge, em Memphis, competindo na categoria solo/duo. Foi o passaporte simbólico e real para uma carreira global. De repente, uma musicista da Austrália estava no radar de produtores, críticos e músicos veteranos do blues tradicional.

Vieram então indicações seguidas ao Blues Music Awards, da Blues Foundation — a mais importante premiação do gênero — tornando Fiona Boyes a artista australiana mais reconhecida pela instituição. Aquilo que começou como descobrimento tardio se transformava, passo a passo, em estrada sólida.

Críticos norte-americanos chamavam atenção para sua versatilidade: o slide cadenciado, o swing texano, a pegada de Chicago, o sentimento de New Orleans… poucos guitarristas contemporâneos transitam com tanta naturalidade por tantas vertentes do blues.



Discografia comentada: uma viagem pelas tradições do blues

Seu primeiro grande cartão de visitas foi “Blues in My Heart” (2000), álbum que já denunciava seu talento para o acústico, com interpretações que ecoavam Memphis Minnie, Jessie Mae Hemphill e o blues pré-guerra. Era o início de uma trajetória que mesclava pesquisa, técnica e alma.

Em 2006, lançou “Lucky 13”, trabalho gravado nos Estados Unidos que ampliou sua presença internacional e rendeu indicações relevantes. Era Fiona dialogando diretamente com o blues elétrico moderno, mas sem abandonar sua vena tradicionalista.

Pouco depois veio “Live From Bluesville”, registro ao vivo que impressionou críticos e venceu prêmios pela autenticidade crua da gravação. Uma sessão de estúdio sincera, quase confessional, que capturou sua precisão técnica e seu senso de dinâmica.

Já em “Professin’ The Blues”, Fiona mergulhou ainda mais na estética vintage, resgatando timbres e atmosferas que pareciam recuperadas de gravações dos anos 30. Sua voz, levemente rouca, encaixava-se com perfeição nas histórias que contava.

Ao longo dos anos, seus álbuns mantiveram a mesma assinatura: respeito absoluto pela tradição, criatividade própria e um senso de musicalidade que não faz concessões ao excesso. Fiona toca para servir ao blues — e não o contrário.

A bênção dos mestres

Nem todo músico tem a sorte de ganhar o reconhecimento dos pais fundadores do blues moderno. Fiona teve. Figurões como Hubert Sumlin (guitarrista de Howlin’ Wolf) e Bob Margolin (membro clássico da banda de Muddy Waters) elogiaram sua abordagem tradicionalista e seu fraseado “de raiz”.

Essa legitimidade jamais se conquistaria apenas com técnica. Vem daquilo que o blues exige: vivência, entrega, vulnerabilidade. E Fiona sempre ofereceu tudo isso em dobro.

Uma ponte entre continentes

Hoje, Fiona Boyes ocupa um espaço singular. Não é apenas uma guitarrista talentosa, tampouco apenas uma pesquisadora apaixonada. Ela se tornou uma ponte viva entre continentes, unindo o blues ancestral norte-americano à sensibilidade australiana, provando — em cada palco, cada estúdio, cada nota — que o blues é maior que fronteiras.

Carrega, na ponta dos dedos, a história de um povo que sofreu, lutou, cantou e transformou dor em arte. E leva essa história adiante com respeito, cuidado e intensidade.

No fim das contas, Fiona Boyes é a evidência de que o blues não escolhe nacionalidade: escolhe alma.


© Todo Dia Um Blues 


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