Tail Dragger: o rugido selvagem do blues de Chicago
Tail Dragger: o rugido selvagem batizado por Howlin' Wolf
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| Foto: Bert Blauwens |
James Yancey Jones nasceu em 30 de setembro de 1940, em Altheimer, Arkansas — um território onde o blues brotava do solo quente, misturado ao suor dos campos e à voz rouca dos que cantavam para espantar a dor. Mas foi em Chicago, a meca elétrica do gênero, que ele se tornaria o lendário Tail Dragger Jones, um homem que viveu, respirou e sangrou blues até seu último suspiro, em 4 de setembro de 2023.
O nome que uiva como o vento do Delta
O apelido “Tail Dragger” não veio por acaso. Foi Howlin’ Wolf, seu mentor e inspiração, quem o batizou assim. Segundo contam, Jones tinha o hábito de chegar atrasado aos shows, “arrastando o rabo” — e o velho lobo não perdoava. O apelido grudou, virou assinatura e, com o tempo, uma marca de respeito no circuito do blues de Chicago. Tail Dragger se transformou em uma presença bruta, teatral, quase xamânica, que incorporava o espírito selvagem de Wolf, mas com alma própria.
Aprendiz do velho lobo
Nos anos 60 e 70, Chicago fervia com nomes como Muddy Waters, Junior Wells, Buddy Guy e, claro, Howlin’ Wolf. Foi ao lado deste último que Tail Dragger aprendeu os códigos do blues elétrico, aquela linguagem direta e visceral que mistura dor e alegria, pregação e profanação. Wolf o levava para os clubes, deixava que ele observasse cada gesto, cada rugido, cada olhar que transformava o palco em uma arena espiritual.
“O blues é como um cachorro grande: você precisa encarar o bicho e aprender a uivar com ele”, dizia Tail Dragger, com um sorriso de quem sabia o peso das palavras. E ele aprendeu — a uivar, a rosnar e a fazer o público sentir o cheiro da fumaça do Mississippi nas cordas da guitarra e no microfone.
O palco e o instinto
Tail Dragger não era um cantor polido, nem pretendia ser. Sua voz, áspera e profunda, parecia ter sido cavada nas entranhas da cidade. Ele não imitava Howlin’ Wolf — ele era o eco moderno de uma linhagem de xamãs urbanos. O blues, para ele, era um ritual, uma pregação de esquina. Ele caminhava entre as mesas, encarava o público nos olhos, fazia o microfone gemer e rugir. Não era performance: era sobrevivência.
Seu repertório misturava canções próprias com releituras intensas de clássicos de Wolf e Willie Dixon. E embora a fama de Tail Dragger tenha ficado restrita ao circuito dos clubes e festivais de blues, quem o viu ao vivo sabia: ali estava o verdadeiro espírito do blues — sem filtros, sem verniz, sem concessões.
Os discos e a trilha da poeira
Tail Dragger lançou álbuns que hoje são tesouros para quem busca o som cru de Chicago. “Crawlin’ Kingsnake” e “Live at Rooster’s Lounge” capturam a energia de suas apresentações, cheias de suor, improviso e fé. Já o disco “American People”, de 2008, mostrou um artista maduro, com letras que falam da vida nas ruas, do amor que se vai e da dignidade que fica. Era blues em estado bruto — música feita de carne, sangue e lembrança.
“Stop Lyin’”: o rugido esquecido do West Side
Gravado em 1982, mas lançado apenas em 2013 pela Delmark Records, o álbum “Stop Lyin’” é uma joia redescoberta do blues de Chicago e um testemunho raro da fúria e da alma de Tail Dragger Jones. Acompanhado por gigantes do circuito, como Johnny B. Moore e Willie Kent, o cantor registrou nesse disco a essência crua do West Side sound — guitarras cortantes, vocais viscerais e a energia elétrica de quem vivia o blues na pele. Em faixas como “So Ezee”, “Ain’t Gonna Cry No Mo” e “Stop Lyin’”, Tail Dragger mistura poder e vulnerabilidade, enquanto em “Tail’s Tale” ele fala, com humor e realismo, sobre as ruas duras e o cotidiano dos músicos que mantinham o blues vivo nos bares esfumaçados de Chicago. Engavetado por três décadas, o disco ressurgiu como um documento histórico e uma das gravações mais autênticas de sua geração — o rugido de um homem que nunca aprendeu a mentir para o blues.
O timbre rouco e o fraseado cortante faziam de Tail Dragger um dos últimos guardiões da velha escola. Ele não queria agradar ao rádio nem moldar o som às tendências. Queria apenas dizer, com todas as notas e todas as feridas: “Eu ainda estou aqui.”
Sombras e redenção
Como tantos bluesmen, Tail Dragger viveu entre a luz e as trevas. Em 1993, uma tragédia abalou sua trajetória: envolveu-se em um incidente que resultou na morte de outro músico. Condenado por homicídio culposo, passou um tempo na prisão. Mas, ao sair, não fugiu de seu passado. Voltou ao palco, mais intenso do que nunca, transformando dor em canção. O blues sempre foi sobre isso: fazer da queda um grito, e do grito, uma ponte para o recomeço.
O último uivo
Tail Dragger partiu em setembro de 2023, aos 82 anos, em Chicago — cidade que o acolheu e o batizou no altar do blues. Sua morte não foi apenas o fim de uma vida, mas o apagar de uma chama que ainda iluminava a velha tradição de Howlin’ Wolf e Muddy Waters. Ele se foi como viveu: rugindo baixinho, com o microfone na mão e o coração cheio de histórias que só o blues pode contar.
Hoje, quem escuta seus discos sente algo raro: a verdade sem enfeites. Porque Tail Dragger Jones não interpretava o blues — ele era o próprio blues, em carne, voz e destino.
Entre as luzes vermelhas dos bares de Chicago e o som cortante das guitarras, seu espírito ainda ronda, arrastando o rabo da saudade. E, de algum canto invisível, talvez se ouça seu velho bordão ecoar: “Don’t mess with the Tail Dragger, baby!”
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