Robert Wilkins: O pregador do blues regravado pelos Rolling Stones

Robert Wilkins: O pregador do blues regravado pelos Rolling Stones



Há figuras no blues que parecem caminhar entre dois mundos — o sagrado e o profano — deixando suas pegadas marcadas em solo de poeira, fé e sobrevivência. Robert Timothy Wilkins pertence a essa linhagem rara: um músico que atravessou as curvas do Delta, viveu os dias de glória e caos dos anos 20, encontrou refúgio na religião e, décadas depois, ressurgiu como uma voz ancestral no renascimento do blues dos anos 60. Sua vida parece um cântico dividido em versos: queda, descoberta, silêncio, revelação.

O começo: o blues antes de saber que era blues

Wilkins nasceu em 1896, no Mississippi, cercado por campos que pareciam cantar baixinho as dores e esperanças de quem passava por eles. Desde cedo, aprendeu a linguagem da rua, do violão e das festas onde o ritmo escapava das mãos como se tivesse vida própria. Nos anos 20, tornou-se um nome respeitado na região de Memphis — um músico versátil, com habilidade rara para navegar entre blues, ragtime, canções populares e melodias que, mais tarde, seriam vistas como fundações da música americana.

Era um tempo em que cada acorde tinha o peso da sobrevivência, e Wilkins rapidamente se destacou por sua elegância musical, sua técnica limpa e seu olhar atento para a melodia. Não era um guitarrista de exageros; era um contador de histórias. Seu estilo, muitas vezes comparado ao de Mississippi John Hurt, tinha sutileza, delicadeza e profundidade emocional.

Entre gravações para a Columbia e apresentações em juke joints, Wilkins construía um repertório que misturava dor, ternura e espiritualidade — ainda que, naquela época, a espiritualidade estivesse mais na poesia do que nos templos.

Os anos 20 e a vida entre sombras e clarões

Foi nesse período que surgiram canções marcantes que mais tarde seriam redescobertas como tesouros perdidos. Entre elas estava “That’s No Way To Get Along”, uma faixa que já trazia a essência de algo maior, um lamento terrestre à espera de redenção. O blues fluía fácil, mas a vida não. O mundo da música era instável, e Wilkins sentia o peso moral das escolhas, das noites longas, das brigas, da bebida e das tentações de quem vivia da arte em tempos difíceis.

Ainda assim, ele continuou criando, guiado pelo instinto de que a música era uma porta — uma porta que às vezes se abria para o caos, às vezes para a luz.

A conversão: quando o blues se ajoelha

Nos anos 30, uma mudança profunda transformou Robert Wilkins. Após anos vivendo à margem, testemunhando violência e sofrimento, ele abraçou a fé e se tornou ministro da Igreja Adventista do Sétimo Dia. Foi um corte brusco e definitivo.

Wilkins abandonou o blues secular. Guardou o violão como quem encerra um capítulo — não com amargura, mas com o peso silencioso de quem quer reescrever o próprio destino. Tornou-se pregador, dedicou-se à comunidade e passou décadas longe dos palcos e dos estúdios.

Mas as águas do blues nunca deixam de correr completamente.

Anos 60: a redescoberta de um mestre esquecido

Nos anos 60, colecionadores, pesquisadores e jovens músicos começaram a vasculhar o passado em busca das raízes da tradição. Foi assim que Robert Wilkins foi encontrado novamente — não como um bluesman, mas como um pregador, já com cabelos brancos e a serenidade de quem fez as pazes com o tempo.

A redescoberta trouxe Wilkins de volta às gravações, mas agora como músico religioso. Seu repertório incluía versões espirituais de canções antigas, transformadas pela fé. 



O encontro com os Rolling Stones

A essa altura, os Rolling Stones eram pontes vivas entre o passado e a modernidade. Fascinados pela força das gravações antigas, encontraram em Wilkins um tesouro.

Eles decidiram regravar “That’s No Way To Get Along” — mas, ao ouvir a nova versão religiosa do músico, renomeada como “Prodigal Son”, optaram por seguir o caminho sagrado. A música entrou no álbum Beggars Banquet, de 1968, em uma versão quase idêntica à gravação de Wilkins.

Foi um gesto de reverência. E o mundo conheceu, mesmo que sem perceber, a grandeza de Robert Wilkins.

“The Original Rolling Stone”: o destaque

Essa compilação, que reúne suas gravações fundamentais realizadas entre 1928 e 1935, lança luz sobre o período mais cru, vital e inovador de Wilkins — quando seu violão ainda carregava o perfume das estradas de terra do Mississippi e sua voz traduzia o mundo antes da conversão religiosa que mudaria seu destino. O disco apresenta faixas icônicas como “Rollin’ Stone (Parts 1 & 2)”, “That’s No Way to Get Along”, “I’ll Go With Her” e “Jailhouse Blues”, todas registradas em um tempo em que o blues rural ainda nem sabia que estava construindo a própria mitologia.

The Original Rolling Stone funciona como um documento vivo: nele, ouvimos um Wilkins jovem, técnico, elegante, profundamente conectado com a tradição e ao mesmo tempo já inovador. Sua guitarra, cheia de nuances e precisão, revela um músico que dominava o ragtime, o folk e o blues com a mesma naturalidade, como se cada estilo fosse apenas mais uma forma de contar histórias.

Lançada oficialmente em 1980, a coletânea reafirma a importância de Robert Wilkins como um dos grandes arquitetos do blues pré-guerra. E, ironicamente, foi justamente esse repertório antigo — preservado e revivido por selos como a Yazoo — que permitiu que novas gerações descobrissem sua grandeza.

Ouvir esse álbum é como abrir uma porta para o passado: você não encontra apenas músicas — encontra um homem antes de sua transformação espiritual, um artista em pleno vigor criativo, um bluesman que colocava a alma em cada acorde. É um retrato essencial de quem Robert Wilkins foi antes de se tornar o pregador que o mundo reencontraria décadas depois.

Últimos anos e morte

Após sua redescoberta, Wilkins continuou se apresentando em festivais de blues e eventos religiosos. Era recebido com carinho e respeito — como um mestre que retornava ao convívio dos discípulos.

Faleceu em 1987, aos 91 anos, deixando um legado que atravessa épocas e sentimentos. Um homem que viveu o blues por dentro, que caiu e se levantou, que encontrou na fé uma forma de continuar cantando.

Robert Wilkins não pertence apenas à história da música — pertence à alma de quem busca redenção.

Seu blues é um sussurro que atravessa igrejas e salões, passado e presente, pecado e perdão. Um canto eterno.


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