Lazy Lester: o mestre do “swamp blues” sem pressa

Lazy Lester: o mestre do “swamp blues” sem pressa



No âmago da Louisiana alagadiça, onde o cypress se dobra ao som da maré e a harmónica chora em ritmo lento, emerge a figura de Lazy Lester (nascido Leslie Johnson). Entre o barro e o brilho das luzes de estúdio, sua história ­– marcada por êxitos, abandono e retorno – revela o espírito errante e essência genuína do blues americano.

infância e raízes: da fazenda à harmónica

Leslie Johnson nasceu em 20 de junho de 1933, em Torras, Louisiana, pequena comunidade próxima de Baton Rouge. Filho de agricultores, cresceu em um cenário rural, onde o som dos ciprestes e o canto dos pássaros talvez fossem a primeira banda sonora de sua vida.

Ainda jovem, trabalhou em postos de gasolina, cortando lenha ou no comércio de bairro, enquanto absorvia os estilos que formariam sua paleta musical: o blues urbano de Little Walter, o country de Jimmie Rodgers e o zydeco/cajun que vibrava nas redondezas da Louisiana. 

Foi por acaso que Lester subiu no ônibus ao lado de Lightnin’ Slim. O guitarrista se dirigia à gravação de estúdio em Crowley via o produtor Jay Miller para o selo Excello Records. Na sessão, faltava o harmonica-player. Lester se ofereceu, o produtor gostou, e assim iniciou-se sua carreira de músico de estúdio. 

ascensão e obras-iniciais: definindo o “swamp blues”

No estúdio, Lester tornou-se um multi-instrumentista: harmonica, guitarra, até percussão improvisada (uso de jornais enrolados, caixas de papelão) para capturar aquele som “sujo”, rústico, genuíno.  Com voz baixa, meio arrastada, e uma harmónica que parecia deslizar entre os pântanos, ele construiu o que muitos chamaram o som do “swamp blues” — uma fusão de blues, country, cajun e R&B.

Seu primeiro single como líder, “I’m Gonna Leave You Baby”, apareceu em meados dos anos 50. Em 1958, veio o que talvez seja seu maior reconhecimento: “I’m a Lover, Not a Fighter” acoplado com “Sugar Coated Love”, dois clássicos que transmitem bem sua cadência mansa, porém irresistível. 

Essas canções ganharam vida própria além da Louisiana: foram gravadas por grupos britânicos, bandas de rockabilly, confirmando que o som de Lester era pequeno na geografia, mas grande no alcance. 

contrastes: sucesso modesto, faturamento precário e despedida prematura

Apesar da criatividade e da influência, o retorno financeiro foi quase nulo. Lester, com franqueza, disse que escrevia músicas, mas não recebia os créditos ou os royalties devidos.  Em 1966, após um desentendimento com Jay Miller, que rejeitou a ideia de que Lester gravasse um tema country sob o argumento “ele é negro”, Lester deixou o selo e o estúdio. 

Nas duas décadas seguintes, ele se afastou da música de estúdio. Trabalhou em construção, como motorista de caminhão e serrador — empregos pesados, mas que sustentavam sua vida longe dos holofotes. 

renascimento tardio: o retorno às gravações e aos palcos

Nos anos 80, o mundo do blues redescobriu Lester. Ele lançou o álbum Lazy Lester Rides Again em 1987, gravado no Reino Unido, que ganhou prêmios e reacendeu seu nome entre os aficionados.  Logo depois veio Harp & Soul (1988) no selo Alligator Records. 

Durante esse período, Lester passou a circular por festivais na Europa, gravou com músicos de destaque e consolidou seu papel de lenda viva. Ele continuou tocando até bem perto de seus últimos anos. 



legado e influência: de Baton Rouge ao mundo

Hoje, o legado de Lazy Lester ressoa em diversos caminhos: artistas como The Kinks gravaram suas músicas, assim como bandas de blues-rock e country.  Seu estilo “preguiçoso” no nome — ele mesmo dizia que “eles me chamam de ‘Lazy’ — bom, eu só estou cansado” — traduzia um canto contra a pressa, contra o imediatismo. 

O “swamp blues” que ele ajudou a moldar é ao mesmo tempo rústico e sofisticado: o hum da harmónica, a batida sutil, o vocal despretensioso que, no entanto, não engana: há força ali. Essa atmosfera rendeu a ele reconhecimento tardio na Blues Foundation e em outras casas de honra do blues. 

últimos anos e partida: o adeus ao harp

Lester fixou residência em Paradise, California, onde viveu com sua companheira. Ainda em 2018 aparece em uma propaganda para a seguradora GEICO, tocando harmónica — um leve e inesperado salto para além dos palcos tradicionais do blues. 

No dia 22 de agosto de 2018, aos 85 anos, Lazy Lester faleceu vitimado por câncer em sua casa. O anúncio foi feito pela Alligator Records.  O silêncio após sua última nota pareceu ecoar pelos pântanos da Louisiana, por onde deixara rastro.

a música que permanece: discografia, curiosidades e altas notas

Discografia em destaque (apenas alguns marcos):

  • “I’m a Lover, Not a Fighter” / “Sugar Coated Love” (1958) – singles que firmaram seu nome.
  • True Blues (1967) – ainda no período inicial do Excello. 
  • Lazy Lester Rides Again (1987) – o álbum-retorno.
  • Harp & Soul (1988) – Alligator Records.

Curiosidades que revelam a alma do artista:

  • Foi o acaso no ônibus que o levou à gravação de Lightnin’ Slim e ao encontro do produtor — e tudo mudou. 
  • Em estúdio, usava objetos improvisados como percussão — caixas de papelão, jornais enrolados — para criar batidas únicas. 
  • Apesar do nome “Lazy” (preguiçoso), ele afirmava que o termo vinha da forma de cantar ou falar, não de sua disposição: “eu só andava tranquilo”. 

por que lembramos lazy lester?

Em um mundo onde a música se acelera, o exemplo de Lazy Lester serve como lembrete de que o ritmo pode ser tranquilo, mas a intensidade, profunda. Sua voz arrastada e harmónica sinuosa falam de terras inundadas, de mossas verdes, de noites longas na Louisiana. Mais que isso: falam de dignidade criativa — mesmo quando o sistema não o tratou justamente.

Hoje, ao escutarmos sua harmónica em “I’m a Lover, Not a Fighter” ou o groove rústico de “Sugar Coated Love”, estamos na verdade revisitamos um legado que atravessou décadas, continentes e gêneros. E que permanece, resistente, como o cipreste que não cede à maré.

Para o blog “Todo Dia Um Blues”, este é o registro de um daqueles artistas que não apenas tocaram o blues — mas o respiraram, o canalizaram e o deixaram como herança.


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