John Mayall: o arquiteto do blues britânico

John Mayall: o arquiteto do blues britânico


Photo: Claus Hampel


Há nomes que atravessam a história como trilhas luminosas, mas há outros que a sustentam — silenciosos, persistentes, fundamentais. John Mayall pertence a essa segunda linhagem: a dos arquitetos. Em 29 de novembro, ele completaria 92 anos. E lembrar sua obra é revisitar não apenas a vida de um bluesman, mas o esqueleto inteiro do blues britânico, moldado por suas mãos, seus ouvidos e sua teimosa devoção.

A infância entre discos, tintas e segredos da música negra

John Mayall nasceu em 1933, na pacata Macclesfield, Inglaterra — um lugar onde o blues parecia tão distante quanto o sol da Califórnia. Mas o destino gosta das suas ironias. Seu pai, guitarrista amador e apaixonado por jazz, guardava em casa uma coleção que carregava Bessie Smith, Lead Belly, Eddie Lang e Big Bill Broonzy. Ali, ainda menino, John descobriu que havia um mundo pulsando por trás das vozes roucas e violões feridos.

Antes da música, porém, ele experimentou outras artes: estudou desenho, design e trabalhou em diversos ofícios, do exército ao design gráfico. Parecia que o blues ainda era apenas uma sombra. Mas, como toda vocação verdadeira, ele o chamou de volta.

O nascimento dos Bluesbreakers: uma usina de talentos

Em 1963, já com trinta anos e vivendo em Londres, Mayall fundou o grupo que mudaria sua trajetória — e a história do blues no Reino Unido: John Mayall & the Bluesbreakers. A banda viria a se tornar o mais fértil viveiro de músicos da história do blues europeu.

O primeiro capítulo célebre dessa saga começou com Eric Clapton, então recém-saído dos Yardbirds. O álbum “Blues Breakers with Eric Clapton” (1966) — o famoso “Beano Album” — tornou-se um marco absoluto. Clapton redescobriu o poder do blues elétrico americano, e Mayall ofereceu o laboratório perfeito para essa transformação.

Mas Clapton foi apenas o primeiro. Pelos Bluesbreakers passaram:

  • Peter Green, que deixaria Mayall para fundar o Fleetwood Mac;
  • Mick Fleetwood e John McVie, que completariam a banda de Green;
  • Mick Taylor, que, dos Bluesbreakers, saltaria para os Rolling Stones;
  • Harvey Mandel, Walter Trout e Coco Montoya, entre outros gigantes.

Se existisse um “DNA do blues britânico”, boa parte dele teria sido cultivada no quintal de John Mayall. Ele não formava bandas — ele formava carreiras.

As fases e reinvenções: sempre um passo adiante

Depois da explosão dos anos 60, Mayall não parou. Ele nunca foi um artista estacionado no tempo. Cada década parecia despertar nele uma nova inquietação criativa.

O período psicodélico e de fusão (final dos 60)

Com os Bluesbreakers dissolvidos, Mayall explorou formações mais acústicas e experimentais, incorporando jazz, funk e world music muito antes de esses termos virarem moda. “The Turning Point” (1969), gravado sem bateria, é um exemplo radical dessa busca.

Os anos 70 na Califórnia

Mayall se mudou para os Estados Unidos e mergulhou de vez em um ambiente musical mais solar, mais livre. Trabalhou com músicos americanos, ampliou sua paleta sonora e lançou discos como “USA Union” (1970) e “Jazz-Blues Fusion” (1972), que mostravam que sua mente não seguia fronteiras.

O retorno dos Bluesbreakers (anos 80 e 90)

Em 1982, ele ressuscitou a marca Bluesbreakers — e o fez com vigor. Nessa fase, revelou e impulsionou novos talentos, como Walter Trout e Coco Montoya, renovando mais uma vez sua importância para a cena.

O álbum “Wake Up Call” (1993), com participações de Buddy Guy, Albert Collins e Mavis Staples, mostra o respeito que Mayall conquistou entre os gigantes do blues mundial.

Um líder, um professor, um curador

A grandeza de John Mayall não está apenas no que ele tocou, mas no que ele inspirou. Ele foi um curador de talentos, um líder que sabia quando se afastar e deixar outros brilharem. Ao contrário de muitos frontmen, Mayall nunca brigou por protagonismo — ele oferecia palco.

É por isso que músicos que passaram por sua banda falam dele com reverência. Para muitos, tocar com Mayall foi como frequentar a mais importante universidade do blues moderno.



Discografia essencial

Entre dezenas de discos, destacam-se:

  • “Blues Breakers with Eric Clapton” (1966)
  • “A Hard Road” (1967) — com Peter Green
  • “Crusade” (1967) — com Mick Taylor
  • “The Turning Point” (1969)
  • “USA Union” (1970)
  • “Behind the Iron Curtain” (1985)
  • “Wake Up Call” (1993)
  • “In the Palace of the King” (2007) — homenagem a Freddie King
  • “Nobody Told Me” (2019)

Cada álbum é uma porta para uma fase distinta de sua vida — e, por tabela, de todo o blues britânico.

A despedida de um gigante

John Mayall faleceu em 2024, aos 90 anos. Mas a impressão que ele deixa é a de alguém que não partiu — apenas mudou de sala. Sua influência permanece viva em cada acorde tocado por músicos britânicos que estudaram seus discos, tocaram em suas bandas ou simplesmente herdaram sua visão generosa e inquieta.

Celebrar John Mayall é celebrar o próprio blues britânico. Porque, sem ele, a história que conhecemos teria outro ritmo, outra forma — talvez menor, certamente diferente. Ele foi mentor, inventor, guia e guardião. Um músico que não buscou o estrelato: buscou a verdade. E encontrou.

Hoje, ao lembrarmos seu aniversário, honramos não só sua obra, mas o mundo que ele ajudou a construir: um mundo onde o blues continua vivo, inquieto, pulsante — exatamente como ele.

“The Sun Is Shining Down”: o último brilho de um mestre

Em sua derradeira viagem de estúdio, “The Sun Is Shining Down” (2022), John Mayall parece ter contemplado a própria jornada com a serenidade de quem sabe que viveu plenamente cada acorde. Não é apenas um álbum — é um gesto final, uma despedida luminosa, um aceno em direção ao horizonte onde o blues encontra o sol.

Mayall reuniu aqui uma banda que soa como extensão do seu próprio pulso: Greg Rzab no baixo firme, Jay Davenport conduzindo a bateria com precisão cirúrgica e alma profunda, e a extraordinária Carolyn Wonderland, guitarrista texana que injeta eletricidade, lirismo e fogo em cada frase de guitarra rítmica e solo. Ele mesmo assume os vocais, a gaita e todos os teclados, reafirmando sua natureza múltipla — um artista que sempre preferiu fazer do estúdio uma casa inteira.

Mas como em toda boa celebração, há convidados que ampliam o brilho. Entre eles:

  • Mike Campbell (Tom Petty and The Heartbreakers), trazendo seu fraseado elegante;
  • Marcus King, o roqueiro de raízes que injeta juventude e intensidade;
  • Buddy Miller, uma das vozes mais respeitadas da música americana;
  • Scarlett Rivera, a violinista icônica da Rolling Thunder Revue de Bob Dylan;
  • Melvin Taylor, gigante do blues de Chicago;
  • Jake Shimabukuro, virtuose havaiano do ukulele;
  • Além de Ron Dziubla (saxofone), Mark Pender (trompete), Richard A. Rosenberg (trombone) e os guitarristas Eric Corne e Billy Watts, que adicionam textura e balanço em três faixas.

O disco foi gravado no Horse Latitude Studio, de Robby Krieger (Doors), e marca o quinto trabalho de estúdio de Mayall pela Forty Below Records, parceria iniciada em 2014. E é notável como esse encontro tardio entre artista e gravadora rendeu alguns dos momentos mais maduros e emocionalmente precisos de sua carreira.

Em “The Sun Is Shining Down”, John Mayall não soa velho — soa sábio. Cada faixa revela um artista que, aos 88 anos, ainda tinha algo novo a dizer. É o blues filtrado pela vida inteira: o toque de esperança, a sombra da memória, a alegria de ainda estar aqui. Um testamento sonoro que reafirma aquilo que sempre soubemos: Mayall não foi apenas o pai do blues britânico. Foi seu farol.


© Todo Dia Um Blues 


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