John Hammond: o garoto que entendeu tudo

John Hammond: o garoto que entendeu tudo



Há quem diga que o blues é uma herança impossível de ser roubada — e talvez por isso John Hammond nunca tenha tentado roubá-la. Filho de um dos maiores produtores da história da música americana, o lendário John Hammond Sr., o jovem Hammond Jr. escolheu não viver à sombra de um nome poderoso, mas caminhar na poeira dos trilhos de Son House, Robert Johnson, Howlin’ Wolf e Muddy Waters. E, com o tempo, mostrou que o sangue branco também pode carregar a alma azul.

John Paul Hammond nasceu em 13 de novembro de 1942, em Nova York. Cresceu cercado de discos e histórias — seu pai foi o homem que apresentou Billie Holiday ao mundo e que colocou Bob Dylan e Bruce Springsteen na rota da Columbia Records. Mas Hammond Jr. não queria os escritórios, os contratos nem os holofotes do jazz elegante de Manhattan. Ele queria o som cru do Sul, o eco das janelas abertas do Mississippi, o ranger das cordas gastas e a voz que carrega a dor de quem viveu debaixo do sol e da injustiça. Foi atrás disso que ele moldou sua vida.

O início de uma jornada pelo blues

Nos anos 1950, enquanto o rock nascia nas rádios e Elvis Presley incendiava o público branco, Hammond Jr. olhava em outra direção. Suas influências vinham de 78 rotações de artistas que a América tentava esquecer. Ele escutava Robert Johnson como quem escuta uma profecia e aprendia, nos discos de Son House e Blind Lemon Jefferson, o poder da simplicidade — uma voz, um violão, uma ferida aberta.

Em 1962, aos 20 anos, Hammond começou a se apresentar em cafés e pequenos clubes de Greenwich Village. Sua figura alta e o rosto de garoto contrastavam com o som antigo que saía de seu violão. Quando abria a boca, o público entendia que ali havia algo raro: autenticidade. Não havia caricatura, nem imitação. Havia respeito e entrega. Hammond era um intérprete do blues que não tentava parecer negro — ele apenas deixava o blues falar por si.

O álbum “John Hammond” (1963): um marco entre mundos

No ano seguinte, 1963, ele lançou seu álbum de estreia, “John Hammond”, pela Vanguard Records. Gravado em um único dia, o disco é uma peça de pureza sonora — voz, violão e harmônica, sem ornamentos. E mais: foi um dos primeiros álbuns de blues autêntico gravado por um artista branco, em plena década de 1960, quando a segregação racial ainda dividia os Estados Unidos.

O repertório é uma homenagem direta aos mestres do gênero. Hammond abre o disco com “Two Trains Running”, de Muddy Waters, e segue com versões intensas de “Cross Road Blues”, de Robert Johnson, “Hoochie Coochie Man”, de Willie Dixon, e “See That My Grave Is Kept Clean”, de Blind Lemon Jefferson. Cada faixa soa como uma confissão — uma conversa entre gerações separadas pela cor, mas unidas pela dor e pelo ritmo.

O que mais impressiona é a maturidade artística. Hammond tinha apenas 21 anos quando gravou o álbum, mas já dominava o fraseado, o tempo e o sentimento que o blues exige. Sua voz rouca, levemente nasal, traz a melancolia certa. Seu violão ressoa como se tivesse saído de uma varanda no Delta. O disco não tenta ser moderno nem reverente: ele é, simplesmente, verdadeiro.

“John Hammond” não foi um sucesso comercial imediato, mas ganhou respeito entre músicos e críticos. Foi o início de uma carreira que atravessaria décadas e influenciaria uma geração inteira de artistas brancos que se apaixonaram pelo blues — de Eric Clapton a Stevie Ray Vaughan, de Paul Butterfield a Bonnie Raitt. Todos, em algum momento, ouviram aquele garoto de Nova York e perceberam que o blues podia atravessar fronteiras.

Entre os gigantes

O talento de Hammond logo chamou atenção dos próprios gigantes do blues. Ele dividiu o palco com Muddy Waters, Howlin’ Wolf e Buddy Guy. Willie Dixon o chamava de “o garoto que entendeu tudo”. Era como se Hammond tivesse recebido uma bênção: o respeito dos mestres negros, algo que poucos artistas brancos conseguiram conquistar sem suspeita de apropriação ou oportunismo.

Há um detalhe curioso na trajetória de Hammond que costuma passar despercebido: em 1965, quando ele formava sua banda em Nova York, chegaram a ensaiar com ele alguns jovens músicos que, anos depois, formariam o núcleo do The Band. Rick Danko, Levon Helm, Garth Hudson e Robbie Robertson tocaram com Hammond por um breve período antes de se unirem a Bob Dylan. Isso mostra como ele foi um elo vivo entre o blues tradicional e o rock moderno.

Uma banda para Hendrix

Em 1966, enquanto vivia no Greenwich Village, Hammond testemunhou o destino cruzar sua porta. Um jovem guitarrista chamado Jimi Hendrix vagava pela cidade em busca de trabalho e de um palco que o aceitasse. Hammond, sempre generoso e intuitivo, percebeu de imediato o brilho diferente naquele rapaz tímido de casaco surrado e olhos febris. Ofereceu-se para montar uma banda ao redor dele e arranjou um show no lendário Café Au Go Go. Os tempos estavam mudando — o folk começava a se fundir ao rock, e os cafés perdiam espaço para bares onde as guitarras falavam mais alto. Foi ali, entre cabos e copos de cerveja, que o destino bateu à porta: Chas Chandler, ex-baixista dos Animals, assistiu àquela apresentação e convidou Hendrix para ir à Inglaterra gravar. Hammond recorda-se de ter olhado o jovem guitarrista nos olhos e dito: “Vá. Essa é a sua chance.” E Jimi foi — levando consigo o som que incendiaria o mundo.



O respeito pela raiz

Ao longo da carreira, John Hammond nunca se desviou do caminho que escolheu. Em vez de buscar o sucesso das paradas, ele preferiu o respeito das tavernas, dos festivais e dos amantes do blues. Sua discografia é um mapa da devoção: discos como “So Many Roads” (1965), “I Can Tell” (1967) e “Source Point” (1970) mantêm o mesmo espírito do primeiro álbum — gravações diretas, sem truques, em que o sentimento é mais importante do que a técnica.

Nos anos 1980 e 1990, enquanto o blues voltava a ganhar fôlego com o revival encabeçado por Stevie Ray Vaughan e Robert Cray, Hammond seguia firme. Gravou álbuns aclamados como “Got Love If You Want It” (1992) e “Wicked Grin” (2001), este último produzido por Tom Waits. A parceria entre os dois foi um encontro de almas — Waits, com seu universo sombrio e teatral, viu em Hammond a figura do contador de histórias antigas, aquele que carrega o peso das estradas no olhar. O resultado foi um álbum vibrante, cheio de ecos do passado e sangue novo nas veias do blues.

Um homem à parte

Hammond nunca se tornou uma celebridade. Nunca quis ser. Ele pertence à linhagem dos músicos que vivem da estrada, dos que ainda afinam o violão antes de cada show e olham o público nos olhos antes de tocar. Há uma honestidade desarmante em sua postura. Ele poderia ter seguido o caminho do pai, o mundo das gravadoras, dos bastidores da indústria, mas preferiu seguir os passos dos andarilhos do blues. Preferiu a poeira à pompa.

Seu estilo de tocar é uma mistura de técnica precisa e emoção pura. Ele domina o slide com a leveza de quem nasceu para isso, e sua gaita parece chorar junto com a voz. Há um equilíbrio raro entre controle e abandono — como se cada nota fosse pensada, mas também sentida no instante. O público sente isso, e é por isso que, até hoje, John Hammond é recebido com respeito reverente nos festivais e clubes de blues do mundo inteiro.

O legado de um pioneiro

Ao longo de mais de seis décadas de carreira, John Hammond manteve viva a chama do blues raiz. Gravou mais de trinta álbuns, recebeu prêmios importantes e continua se apresentando, fiel à sua missão. Ele é, talvez, o exemplo mais claro de como o blues pode transcender a cor, a origem ou o tempo. O que importa é a verdade no som — e essa verdade, Hammond sempre teve de sobra.

Hoje, quando celebramos seu aniversário, é impossível não pensar na importância simbólica de sua jornada. Em um mundo que ainda tenta dividir a música por fronteiras raciais ou comerciais, John Hammond é um lembrete poderoso de que o blues não pertence a ninguém — ele apenas escolhe seus intérpretes. E, em 1963, escolheu um jovem branco de Nova York para ser um de seus mais fiéis guardiões.

O álbum que mudou o curso

“John Hammond”, seu disco de estreia, não é apenas um marco na discografia de um artista; é um marco na história do blues moderno. Foi a prova de que a herança negra americana podia ser respeitada e reinterpretada com amor, sem perder sua essência. E, mais do que isso, mostrou que o blues, mesmo nas mãos de um jovem de pele clara, continuava sendo a linguagem da alma.

Cada faixa do álbum tem o peso de um ritual. Em “Cross Road Blues”, Hammond evoca o espírito de Robert Johnson com devoção quase religiosa. Em “Hoochie Coochie Man”, ele traz a energia dos bares de Chicago para o estúdio. Em “See That My Grave Is Kept Clean”, encerra o disco como quem fecha um ciclo — a prece de Blind Lemon Jefferson é transformada em uma despedida simbólica, um juramento de fidelidade eterna ao blues.

Mais de sessenta anos depois, esse álbum ainda soa fresco. É cru, é humano, é real. É o tipo de gravação que não precisa de modas nem remasterizações para continuar viva. O som do violão de Hammond e sua voz, meio arranhada, meio doce, bastam para lembrar que o blues não morre — ele apenas muda de corpo.

Um espírito que resiste

John P. Hammond segue vivo, ativo, tocando e encantando plateias. Aos mais de 80 anos, carrega o mesmo brilho nos olhos de quando era um garoto fascinado pelos discos de 78 rotações. Seu nome não é sinônimo de fama, mas de integridade. É o tipo de artista que nunca fez concessões, que permaneceu fiel à música como quem permanece fiel a uma causa. E, talvez por isso, o blues o tenha recompensado com longevidade e respeito.

Para quem o escuta pela primeira vez, o álbum “John Hammond” é uma porta de entrada para o universo do blues clássico. Para quem já o conhece, é um lembrete de que a autenticidade ainda é possível. E para o próprio Hammond, talvez seja a confirmação de que ele escolheu o caminho certo — o mais difícil, o mais solitário, mas também o mais verdadeiro.

Em cada acorde, em cada sopro de gaita, Hammond nos lembra que o blues é mais do que uma forma musical: é uma forma de existir. É a maneira de transformar dor em beleza, perda em aprendizado, silêncio em canção. E ele, mais do que ninguém, aprendeu essa lição com humildade e paixão.

Hoje, o blues sopra uma vela a mais. E o nome gravado nela é John P. Hammond.


© Todo Dia Um Blues

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