Earl Hooker: o mestre das cordas deslizantes
Earl Hooker: o mestre das cordas deslizantes
Há guitarristas que marcam época, e há aqueles que parecem vir de outro plano, tocando como se o som fosse uma extensão da própria alma. Earl Hooker pertence a esse segundo grupo — um artista que levou o blues a uma dimensão quase sobrenatural, fazendo da guitarra slide uma ferramenta de encantamento. Sua vida foi breve, mas seu som ecoa como um feitiço, uma oração elétrica vinda das profundezas do Delta e dos becos de Chicago.
O início de um prodígio do blues
Earl Zebedee Hooker nasceu em 15 de janeiro de 1930, no Mississippi, berço sagrado do blues. Primo do lendário John Lee Hooker, ele cresceu cercado por música e poeira, ouvindo os cantadores de esquina e absorvendo cada nota como quem respira. Ainda adolescente, mudou-se com a família para Chicago, onde o blues urbano fervilhava em cada esquina, entre o cheiro de cerveja, fumaça e amplificadores chiando.
Foi ali que o jovem Earl começou a moldar seu estilo inconfundível — uma mistura de técnica refinada, feeling absoluto e uma destreza no slide que o tornaria uma lenda entre os músicos. Era o tipo de guitarrista que não precisava cantar: a guitarra falava por ele.
Um guitarrista à frente do seu tempo
Enquanto outros buscavam velocidade, Hooker buscava expressão. Usava a guitarra de doze cordas, o slide de vidro e um toque de sutileza que fazia o instrumento soar como uma voz humana. Era capaz de alternar entre o choro e o grito, entre o sussurro e a tempestade. Nenhum vibrato soava igual ao seu.
Durante os anos 1950 e 1960, Hooker se tornou uma figura reverenciada nos bastidores de Chicago. Gravou para selos como King, Cuca e Chess, mas muitas vezes ficou na sombra dos artistas que acompanhava — Junior Wells, Muddy Waters, Sonny Boy Williamson II e Elmore James foram apenas alguns dos gigantes que tiveram o privilégio de tê-lo ao lado.
Seus shows eram lendários: ele tocava com os dentes, atrás das costas, ajoelhado, fazendo a guitarra chorar e sorrir ao mesmo tempo. Não havia pose, apenas a entrega de quem sabia que o tempo era curto e a música, eterna.
O som que marcou gerações
Earl Hooker não era apenas um guitarrista de blues — era um inventor de linguagem. Explorou pedais, efeitos e o uso criativo do amplificador em uma época em que a tecnologia ainda engatinhava. Em faixas como “Blue Guitar”, “Two Bugs and a Roach” e “Wah Wah Blues”, é possível sentir o quanto ele expandiu as fronteiras do estilo sem jamais perder o pulso do Mississippi.
Seu álbum Two Bugs and a Roach (1969), lançado pela Arhoolie Records, é uma das mais puras expressões do blues moderno — cru, quente e livre. Hooker gravou também para a Checker e a ABC Bluesway, criando um catálogo que mistura virtuosismo com pureza emocional. Nenhum solo seu parece improvisado; tudo soa como se já estivesse escrito nas veias.
Entre a genialidade e a doença
A vida de Earl Hooker foi marcada por uma luta silenciosa: desde jovem, ele sofria de tuberculose. A doença o acompanhou como uma sombra, o afastando dos palcos em diversos períodos e tornando sua existência ainda mais intensa e frágil. Cada nota que ele tirava parecia saber disso — um som que não pedia piedade, mas transmitia uma urgência vital.
Apesar das internações e das recaídas, Hooker continuou a tocar sempre que podia. Em 1970, gravou um de seus últimos discos, “Hooker and Steve”, ao lado do pianista Steve Miller, mostrando que sua chama seguia acesa, mesmo quando o corpo começava a falhar.
A morte precoce e o legado imortal
Earl Hooker faleceu em 21 de abril de 1970, aos 40 anos, em Chicago. Morreu como viveu: cercado de blues. Não teve tempo de alcançar o reconhecimento merecido em vida, mas sua morte o transformou em um mito entre os músicos. B.B. King o chamava de “um dos melhores guitarristas que já existiram”. E não era exagero. Hooker era o tipo de artista que não precisava de palco nem de fama — bastava um slide e uma alma em chamas.
Hoje, cada nota que sai de uma guitarra com slide carrega um pouco de seu espírito. Earl Hooker foi o som do aço e da emoção, do improviso e da eternidade. O homem que fez o blues cantar mesmo sem voz. Um mestre que vive onde o som nunca morre.
Discografia essencial
- Blue Guitar (1962)
- Two Bugs and a Roach (1969)
- Don’t Have to Worry (1969)
- Hooker and Steve (1970)
- You Don’t Have to Worry (1971, póstumo)
No fim, Hooker deixou mais que discos — deixou um modo de tocar o mundo com os dedos. Um som que ainda vibra nas cordas de quem ousa se deixar tocar pelo blues.
Porque Earl Hooker não foi apenas um guitarrista. Foi o próprio blues em forma humana.
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