Lefty Dizz: o showman da Stratocaster invertida
Lefty Dizz: o showman da Stratocaster invertida
Walter “Lefty Dizz” Williams nasceu em 29 de abril de 1937 em Osceola, Arkansas, e morreu em 7 de setembro de 1993 em Chicago. Foi um dos personagens mais exuberantes do circuito de Chicago: guitarrista, cantor e entertainer, cuja presença em cena muitas vezes fazia o público rir e, sobretudo, dançar. A lenda de Lefty nasceu tanto do seu som quanto de seu jeito — irreverente, escancarado e profundamente blues.
As primeiras cordas e o destino invertido
Formado pela vida dura do Delta e pelo aço das cidades do Norte, Walter Williams aprendeu guitarra depois de servir quatro anos na Força Aérea dos Estados Unidos. Ao chegar à cena de Detroit e, em seguida, de Chicago, ele trouxe consigo um modo peculiar de tocar: era canhoto, mas tocava uma guitarra de destro de cabeça para baixo — sem invertê-la — e isso deixou as cordas em ordem invertida, gerando frases, bends e voicings incomuns que logo se tornaram sua assinatura sonora. Essa maneira de tocar não era apenas técnica: era identidade — um assobio de diferença que fazia o som despontar entre tantos outros.
Do palco de clubes ao mundo: aprendizado com mestres
Na Chicago dos anos 1960 e 1970, Lefty Dizz foi aluno e parceiro de gigantes. Tocou com nomes como Junior Wells, J. B. Lenoir e integrou, por um tempo decisivo, a banda de Hound Dog Taylor, ocupando um lugar de destaque no circuito elétrico da cidade. Essas parcerias ensinaram-lhe o ofício do palco e deram à sua música uma raiz que equilibrou virtuosismo e sensação bruta — o que o tornaria igualmente respeitado por colegas e amado pelo público.
Shock Treatment: nascimento de um estilo próprio
Depois da morte de Hound Dog Taylor, Lefty formou sua própria banda, Shock Treatment, onde desenvolveu uma estética que combinava riffs cortantes, solos surpreendentes e o discurso do showman — piadas, provocações e a famosa “Dizz Bizz”, sua maneira de circular pela plateia enquanto tocava. Foi com o Shock Treatment que Lefty consolidou o repertório que o público lembraria: canções que misturavam humor, sensualidade e uma honestidade musical direta, sempre apoiada por uma guitarra que parecia desafiar as regras do fraseado.
O palco como ritual: a persona Lefty
Lefty Dizz transformava cada apresentação em espetáculo: não apenas por técnica, mas por carisma. Havia nele uma mistura rara — havia o músico que sabia tocar de verdade e o performista que sabia narrar com o corpo. Suas histórias entre as músicas, suas voltas pelo público com a guitarra pendurada para frente ou para trás, e o tempero picante das letras fabricavam um ambiente de casa noturna, onde o riso e a contrição se misturavam num mesmo compasso. Para muitos, Lefty era a prova viva de que o blues também pode ser festa e travessura.
Gravações e registros: o arquivo de um artista ao vivo
Embora Lefty tenha gravado álbuns e singles — lançamentos em selos como Isabel, Black & Blue, JSP e outros — sua reputação cresceu sobretudo pelos shows ao vivo, onde suas qualidades se revelavam em toda a amplitude. Discos como Ain't It Nice To Be Loved e registros ao vivo documentaram um músico em trânsito entre o revival blues e as exigências do público europeu e norte-americano que sempre apreciou a crueza do Chicago show. Parte do acervo discográfico registra o diálogo com parceiros como Johnny “Big Moose” Walker e outros nomes do circuito.
Influência e recepção
Lefty foi testemunhado por músicos de fora do circuito do blues — nomes do rock que passavam por Chicago e ouviam aquelas guitarras incendiárias — e deixou marcas que extrapolaram seu catálogo: um jeito de tocar sem dó, uma honestidade performática e uma forma de usar a guitarra como instrumento de comédia, sedução e denúncia. Não era apenas o que ele tocava, mas como fazia o público sentir cada nota.
Do palco às manchetes tristes: doença e despedida
O fim de Lefty Dizz veio em 1993, quando Walter Williams faleceu em Chicago, aos 56 anos. A causa registrada foi câncer no esôfago — uma perda sentida por toda a comunidade do blues, que perdeu não só um guitarrista brilhante, mas um contador de histórias que transformava cada apresentação em encontro coletivo. Até hoje, quem esteve em seus shows lembra do riso e do suor, da eletricidade no ar e daquele jeito intransferível de virar uma frase musical no momento exato para arrancar aplausos.
Legado: mais que técnica, humanidade
O legado de Lefty Dizz não se mede apenas em discos vendidos ou em prêmios — raros em sua trajetória — mas na parcela de público que deixou com a marca de uma experiência direta: o encontro com um artista que fazia do palco um confessionário e de sua guitarra uma língua vivaz. Lefty nos ensinou que o blues aceita a exuberância e que a habilidade sem caráter é apenas som; o caráter transforma o som em memória.
Discografia seletiva
- Somebody Stole My Christmas (Isabel Records, 1979) — um trabalho inicial que rendeu atenção no circuito.
- Ain't It Nice to Be Loved (JSP / Black & Blue, anos 80/90) — registros que aproximaram Lefty de audiências europeias.
- Lefty Dizz & Shock Treatment — ao vivo — uma série de gravações que documentam sua força como artista de palco.
- Compilações e participações: registros ao lado de Johnny “Big Moose” Walker, aparições em coletâneas do Chicago blues e participações que conservam sua voz e sua guitarra.
Curiosidades e notas de bastidor
- Origem do nome: “Lefty” pela maneira canhota e invertida de tocar; “Dizz” possivelmente em referência a um toque de jazz à la Dizzy Gillespie ou a um apelido ganho nos becos onde tocava. A exatidão varia conforme a lembrança das fontes, mas a combinação virou marca registrada.
- Estilo de guitarra: Tocava uma Fender Stratocaster de forma invertida — um detalhe técnico que fazia seus licks soarem únicos.
- Personagem do clube: Kingston Mines, Checkerboard Lounge e outros clubes de Chicago foram palcos onde sua lenda foi amaciada e endurecida.
Por que lembrar Lefty Dizz hoje?
Porque o blues não é só arquivo; é presente sensorial. Ao revisitar Lefty, lembramos que o gênero se alimenta de vozes inesquecíveis — aquelas que não apenas expressam sofrimento, mas celebram o jeito humano de transformar dor em festa, solidão em piada, e silêncio em riff. Recordar Walter “Lefty Dizz” Williams é manter viva a ideia de que a música pode ser ao mesmo tempo profunda e divertida — um espelho da vida que não teme se exibir.
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