Junior Kimbrough: o hipnótico mestre do Hill Country Blues
Junior Kimbrough: o hipnótico mestre do Hill Country Blues
Há algo de ancestral nas cordas de Junior Kimbrough. Um som que não apenas se ouve, mas se sente — como se a terra tremesse por dentro do corpo, reverberando nos ossos. Ele não era do tipo que buscava os holofotes ou os grandes palcos. Tocava para o povo, para os amigos, para quem entendia que o blues é mais do que música: é comunhão, é transe, é sobrevivência.
O homem do norte do Mississippi
David “Junior” Kimbrough nasceu em Hudsonville, Mississippi, em 28 de julho de 1930. Cresceu cercado de música e miséria, como muitos dos que transformaram dor em arte. Seu som veio das colinas — não do Delta lamacento de Robert Johnson ou Son House, mas das terras onduladas do norte, onde o ritmo fala mais alto que a harmonia. Ali, nascia o que o mundo chamaria de Hill Country Blues.
Enquanto o Delta Blues se apoiava em progressões clássicas de doze compassos, o Hill Country se libertava das amarras. Era um blues circular, repetitivo, quase tribal. Junior entendeu isso cedo e fez dessa repetição um feitiço. Suas canções, longas e hipnóticas, pareciam não querer acabar — como se o tempo perdesse sentido dentro de cada groove.
O som que não acaba nunca
Influenciado por mestres como Lightnin’ Hopkins, Fred McDowell e Elmore James, Kimbrough criou um estilo próprio: guitarra em afinação aberta, linhas de baixo pulsantes, vocais em murmúrio e uma batida que se repetia até o corpo inteiro entrar no ritmo. Era o som do chão, do vento, da noite que não dorme.
Quando perguntavam sobre acordes ou teoria, ele apenas ria. Seu blues era puro instinto — nascido das festas em cabanas de madeira, das longas madrugadas regadas a bebida, suor e tambor. A cada nota, Kimbrough parecia evocar um feitiço antigo, uma prece de resistência.
Junior’s Place: o templo do groove
Em meados dos anos 1980, Junior abriu o lendário Junior’s Place em Chulahoma, Mississippi — um juke joint simples, de chão de barro e alma infinita. Era mais do que um bar: era um santuário do blues. Ali, gente como R.L. Burnside, T-Model Ford e Kenny Brown se encontravam para tocar até o amanhecer. Não havia setlist, não havia regras — só o som hipnótico que vinha das colinas.
As gravações feitas naquele pequeno templo se tornariam históricas. Algumas delas dariam origem ao álbum All Night Long (1992), lançado pela Fat Possum Records, gravado ao vivo no próprio bar. É talvez o registro mais fiel da alma de Kimbrough — sem filtros, sem overdubs, só verdade.
All Night Long: o feitiço do blues sem fim
All Night Long é o tipo de álbum que não se escuta: se entra nele. Cada faixa é uma espiral sonora que prende o ouvinte num ciclo de groove e hipnose. Músicos locais, muitos deles parentes de Kimbrough, criaram uma base que soa como uma locomotiva de alma. O disco abre com “Work Me Baby” e já anuncia que ali o blues não é sofrimento — é transe, é resistência.
O álbum foi aclamado pela crítica, mas mais do que isso: tornou-se uma espécie de rito iniciático. Quem o ouve entende que o blues do norte do Mississippi é outra dimensão da música negra americana — mais rítmica, mais bruta, mais próxima da África ancestral que pulsa no coração do Mississipi.
Outros registros essenciais
Depois do impacto de All Night Long, vieram outros discos fundamentais: Sad Days, Lonely Nights (1994), ainda mais profundo e meditativo; Most Things Haven’t Worked Out (1997), em que o blues se torna quase psicodélico; e God Knows I Tried (1998), lançado pouco antes de sua morte, como uma despedida em murmúrios e groove.
Seu primeiro registro, Do the Rump! (1988), já antecipava tudo o que viria: riffs em loop, sensualidade e mistério. Kimbrough não precisava gritar para ser ouvido — bastava tocar. A cada dedilhado, o tempo se dissolvia.
O blues que virou herança
Junior Kimbrough morreu em 17 de janeiro de 1998, aos 67 anos, vítima de um derrame. Poucos meses depois, um de seus filhos, Dan Kimbrough, também faleceu. Sua morte deixou um vazio no Mississippi, mas sua música continuou viva — dentro dos filhos, como David Malone Kimbrough Jr., e nos músicos que ele inspirou.
Bandas como The North Mississippi Allstars e artistas como Cedric Burnside (neto de R.L. Burnside) mantêm viva essa batida ancestral. E quando o The Black Keys lançou o álbum Chulahoma: The Songs of Junior Kimbrough (2006), o mundo inteiro entendeu que aquele som minimalista e pulsante era um portal para algo muito maior do que o blues tradicional.
O legado do transe
O blues de Junior Kimbrough não era para as rádios — era para o corpo. Ele transformou o conceito de repetição em arte, criando um som que desafiava a pressa e celebrava o instante. Em seu juke joint, não havia plateia: todos faziam parte do mesmo feitiço.
Em tempos de músicas descartáveis, a obra de Kimbrough continua a nos lembrar que o verdadeiro blues é circular — ele volta sempre, insistente, como um coração que se recusa a parar de bater.
Junior Kimbrough foi mais do que um guitarrista. Foi um xamã do som, um contador de histórias sem palavras, um homem que, com poucas notas, criou um universo inteiro. Seu blues ainda ecoa pelas colinas do Mississippi — lento, hipnótico, infinito.


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