James “Son” Thomas: o blues moldado no barro do Delta

James “Son” Thomas: o blues moldado no barro do Delta



Nas margens do Yazoo River, onde o vento assobia melodias ancestrais e o barro guarda segredos dos mortos, nasceu um homem que transformou a terra em arte e a dor em canção. Seu nome era James “Son” Thomas — músico, escultor e coveiro. Um artista que entendeu, como poucos, que o blues nasce do barro, e que o barro é o retrato da alma humana.

O menino do barro e do Mississippi

James Henry Thomas veio ao mundo em 14 de outubro de 1926, em Eden, no condado de Yazoo, Mississippi. Cresceu entre plantações, funerais e histórias sussurradas à beira do rio. Desde cedo, moldava figuras de argila, aprendendo com o tio Joe Cooper a dar forma ao que a vida lhe mostrava: homens, animais e rostos silenciosos que pareciam observá-lo de volta.

As margens do Yazoo eram seu ateliê. Dali tirava o barro vermelho com que criava pequenas esculturas e, mais tarde, as temidas caveiras que o tornaram conhecido como um dos artistas populares mais enigmáticos do sul dos Estados Unidos. Sua fama começou com o apelido “Son Ford”, que ele ganhou por brincar com pequenos tratores Ford feitos de barro. Mais tarde, o nome ficou simples: Son Thomas.

O coveiro que cantava blues

Durante a vida adulta, Thomas trabalhou como coveiro no Mississippi. Entre covas abertas e dias de calor sufocante, ele refletia sobre a finitude da vida. Essa convivência com a morte o inspirou a criar esculturas de caveiras com dentes humanos e cabelos verdadeiros, como se o barro fosse um espelho do destino de todos. “We all end up in the clay”, dizia ele — “todos nós acabamos no barro”.

Mas o barro também lhe deu voz. À noite, no mesmo quintal onde moldava rostos de argila, ele afinava sua guitarra e deixava o blues escapar pelos dedos. Tocava como quem reza: sem pressa, com dor e verdade. Seu estilo era cru, direto, carregado de humanidade. Thomas era o tipo de músico que fazia o tempo parar por um instante — um contador de histórias que usava seis cordas e um coração calejado.

Entre esculturas e canções

Nos anos 70, James “Son” Thomas começou a ganhar reconhecimento além do Delta. Suas esculturas foram expostas em importantes museus e galerias, como a Corcoran Gallery of Art, em Washington, na histórica mostra Black Folk Art in America. Era o reconhecimento de um artista que nunca se afastou de suas origens, que enxergava na terra um meio de se comunicar com o invisível.

Ao mesmo tempo, seu nome circulava em festivais e documentários sobre o blues do Mississippi. Thomas apareceu em filmes como Mississippi Delta Blues e Give My Poor Heart Ease, levando ao público sua voz rouca, seu slide arrastado e sua presença hipnótica. Gravou canções marcantes como “Beefsteak Blues”, “Catfish Blues” e “Once I Had a Car”, além de parcerias com outros nomes do Delta, como Eddie Cusic.

Seus discos refletem uma estética profundamente enraizada — o blues sem adornos, feito de carne, barro e solidão. Cada nota soa como uma escavação na alma humana, cada verso ecoa as histórias de quem viveu nas sombras da pobreza, da segregação e da morte.



Arte que transcende o corpo

James “Son” Thomas não foi apenas um músico, mas um símbolo da resistência cultural do Delta. Suas esculturas e canções são faces da mesma verdade: a arte como continuação da vida. Quando esculpia uma cabeça de barro, estava criando um retrato de si mesmo, um registro daquilo que o tempo não poderia apagar. Quando tocava blues, fazia o mesmo — só que com som em vez de argila.

Mesmo sem grandes recursos ou fama comercial, Son Thomas foi convidado a se apresentar em palcos da Europa e em eventos dedicados ao folk e ao blues tradicional. Em cada aparição, levava consigo a autenticidade de quem nunca precisou de artifícios para emocionar. Ele era o próprio Delta — silencioso, sombrio e profundamente humano.

Morte e permanência

James “Son” Thomas faleceu em 26 de junho de 1993, em Greenville, Mississippi, vítima de complicações respiratórias e de um acidente vascular cerebral. Morreu como viveu: simples, com o coração no blues e as mãos marcadas pelo barro.

Sua memória, porém, permanece viva. Em Leland, uma placa do Mississippi Blues Trail celebra sua trajetória. E sua lápide, financiada pelo músico John Fogerty, é um símbolo de reverência a um artista que viveu à margem, mas cuja obra continua iluminando o coração do Delta.

O blues moldado na eternidade

Em James “Son” Thomas, o blues ganha corpo. O barro ganha voz. E o silêncio dos mortos se transforma em música. Ele nos ensinou que a arte não nasce do luxo, mas da necessidade — e que cada escultura, cada acorde, é uma tentativa de conversar com a morte antes que ela nos chame pelo nome.

Quando o sol se põe sobre o Mississippi e a terra úmida começa a esfriar, ainda se pode ouvir seu violão sussurrando ao vento. É o som de James “Son” Thomas, o homem que moldou o blues com as mãos sujas de barro e o coração cheio de vida.


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