Cássia Eller & Victor Biglione – In Blues: a alma azul de uma voz eterna

Cássia Eller & Victor Biglione – In Blues: a alma azul de uma voz eterna



Há registros que parecem ter esperado o tempo certo para nascer. “Cássia Eller & Victor Biglione – In Blues” é um desses milagres tardios — um disco que dormiu por três décadas até encontrar o instante exato para revelar sua força. Gravado entre 1991 e 1992, o álbum traz uma das vozes mais intensas do Brasil mergulhando nas águas profundas do blues, ao lado de um dos guitarristas mais virtuosos e inquietos de sua geração.

O encontro entre o instinto e a técnica

Quando Cássia Eller e Victor Biglione se encontraram em estúdio, ela ainda não era o fenômeno que incendiaria os palcos nos anos seguintes. Era uma cantora de voz crua, rasgada, dona de uma entrega que beirava o transe. Biglione, por sua vez, vinha de uma carreira sólida no jazz e na música instrumental, acostumado a transitar entre o refinamento harmônico e a improvisação selvagem. O resultado desse cruzamento é um disco de combustão lenta, onde o instinto de Cássia encontra a precisão de Biglione — e o blues serve como língua comum entre dois mundos.

Um tesouro guardado por 30 anos

As gravações de In Blues ficaram engavetadas por razões diversas: compromissos de agenda, mudanças de gravadora e o foco de Cássia em outros projetos. O material repousou em fitas analógicas até que, em 2022, a Universal Music decidiu resgatar e remasterizar as sessões originais. O lançamento coincidiu com as comemorações dos 60 anos de nascimento da cantora — um presente aos fãs e uma janela aberta para um momento quase secreto de sua trajetória.

O engenheiro de som Ricardo Garcia assinou a remasterização, preservando a textura orgânica das gravações originais, feitas ao vivo em estúdio. O som é cru, quente, íntimo — como se o ouvinte estivesse a poucos metros da banda, sentindo a vibração das válvulas e o chiado dos equipamentos.



O repertório: quando o blues fala em português de alma

O álbum passeia por clássicos do blues e do rock reinterpretados com liberdade. (I’m Your) Hoochie Coochie Man ganha uma pegada quase tribal, com Cássia rugindo cada verso como se estivesse num ritual. Em Same Old Blues, a dor e a doçura se equilibram na voz que transforma confissão em catarse. Há também versões de Need Your Love So Bad, I Ain’t Superstitious, If Six Was Nine e medleys que unem Willie Dixon, Peter Green e Jeff Beck em faíscas de improviso.

Os músicos convidados formam um time de luxo: André Gomes (baixo), André Tandeta (bateria), Marcos Nimrichter (órgão), Ricardo Leão (teclados) e o lendário Nico Assumpção (baixo acústico). Cada faixa soa como uma jam session guiada pela intensidade — não há sobras, apenas entrega.

Entre o jazz e o Mississippi

Biglione conduz a banda com um senso de improvisação que flerta com o jazz, mas é o espírito do Mississippi que domina o ambiente. O guitarrista alterna solos cortantes e passagens delicadas, criando um diálogo direto com a voz de Cássia. Juntos, eles transformam o estúdio em uma espécie de território livre, onde o blues deixa de ser gênero e se torna estado de espírito.

Ouvir esse disco é testemunhar uma artista em ebulição, antes da fama, antes da idolatria. É ver Cássia na essência: uma intérprete que se despia de tudo para cantar o que sentia. E quando o blues encontra uma alma dessas, o resultado ultrapassa o tempo — como se o passado tivesse ficado à espera de ser redescoberto.

Um prêmio póstumo, um reconhecimento em vida

Em 2023, o álbum recebeu o Prêmio da Música Brasileira na categoria Lançamento em Língua Estrangeira, confirmando o impacto dessa redescoberta. A crítica destacou o equilíbrio entre força e sensibilidade, e o público celebrou o reencontro com a voz que marcou gerações.

Mais do que um resgate, In Blues é um testemunho de que o tempo não apaga a verdade de uma interpretação. Cássia Eller segue viva em cada nota, em cada suspiro entre versos, em cada solo que Biglione solta como se ainda houvesse palco.

O blues em português de coração

Se o blues nasceu nas margens do Mississippi, em Cássia ele renasce nas esquinas do Rio e nas madrugadas brasileiras. Sua voz, feita de ternura e tempestade, dá às canções estrangeiras uma nova geografia — um blues falado em português de coração.

“Cássia Eller & Victor Biglione – In Blues” não é apenas um disco perdido. É um encontro espiritual entre uma cantora que viveu intensamente e um guitarrista que compreendeu a linguagem do risco. Um lembrete de que, para certos artistas, o tempo não passa: apenas amadurece o eco daquilo que nunca deixou de existir.

Texto original © Todo Dia Um Blues – 2025


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Flaherty Brotherhood: O Coletivo do Deserto que Reinventa o Blues para o Século XXI

Marcos Ottaviano And His Blues Band: 35 Anos de Carreira

Top 10 - Os Blues Mais Regravados de Todos os Tempos