Tedeschi Trucks Band & Leon Russell — Mad Dogs & Englishmen Revisited (Live at LOCKN'): um tributo colossal e comovente

Tedeschi Trucks Band & Leon Russell — Mad Dogs & Englishmen Revisited (Live at LOCKN'): um tributo colossal e comovente



Há discos que nascem para celebrar, e outros que—por coragem histórica e rigor emocional—conseguem reabrir feridas boas do passado com inteligência. Mad Dogs & Englishmen Revisited (Live at LOCKN'), registrado no Festival LOCKN' de 2015 e lançado em 2025, pertence claramente à segunda categoria. Liderada pelo casal Derek Trucks e Susan Tedeschi, a Tedeschi Trucks Band assume a difícil missão de revisitarem o espírito do lendário coletivo capitaneado por Joe Cocker e Leon Russell em 1970 — e o faz com ambição, respeito e uma generosidade sonora rara nos tributos contemporâneos.

O cenário: escala, afetos e memória

O registro nasce de uma noite em que tudo se alinhou: músicos de primeira linha, alguns sobreviventes do Mad Dogs original (como vocalistas convidados) e o próprio Leon Russell ao piano, servindo como elo entre épocas. A Tedeschi Trucks Band expande seu já volumoso arsenal — vozes, metais, igrejas de backing vocals, seções rítmicas densas — para encenar a ideia original de “tropa” musical. O resultado tem o calor do ao vivo e a consciência histórica de quem sabe o peso do repertório. 

Interpretações e arranjos: entre a reverência e a reinvenção

O que chama atenção desde os primeiros compassos é a escolha estética: não se trata de uma cópia literal, mas de uma reinterpretação que respeita a urgência gospel-soul-rock do material e, ao mesmo tempo, deixa espaço para as assinaturas da TTB — os solos elípticos de Derek Trucks, as variações de timbre e fraseado de Susan Tedeschi e os arranjos de sopros que modernizam sem descaracterizar. Em faixas como The Letter e Delta Lady, a banda equilibra força bruta e sutileza, trazendo camadas instrumentais que funcionam como muro de som e também como palco para vozes convidadas. 

Vozes e protagonistas

Susan Tedeschi — já uma intérprete visceral por conta própria — assume passagens com autoridade, às vezes tocando na fronteira do pastiche e do tributo, mas quase sempre vencendo pelo sentimento. Derek Trucks, com seu slide canalizando ecos do blues e do raga, oferece os momentos instrumentais mais memoráveis, construindo pontes entre a tradição e o presente. As vozes de apoio (algumas oriundas do elenco original do Mad Dogs) funcionam como um coro dramático: ora sustentando, ora apontando cortes dramáticos que elevam o impacto de momentos-chave. 

Momentos altos e riscos

O disco tem momentos de pura celebração — arranjos de metais que explodem como fogos e duetos vocais que soam sinceros — e também passagens onde a grandiosidade tropeça na sua própria ambição. Nem toda reinvenção convence: algumas escolhas de repertório e edição (músicas cortadas da noite original, outras esticadas além do necessário) lembram que, em tributos desse porte, o equilíbrio entre preservação histórica e necessidade de se afirmar artisticamente é precário. Críticas contemporâneas apontaram exatamente essa tensão — elogiando a energia e questionando se a presença de tantos convidados às vezes dilui o fio narrativo do show. 



O papel de Leon Russell

Ter Leon Russell presente — no piano e na condução simbólica — é elemento que transforma o registro: mais que ancorar o repertório, sua participação confere legitimidade e cor local à proposta. Mesmo em passagens onde a TTB toma a liderança, a sombra do arranjador original aparece em detalhes de harmonia e em pequenos gestos pianísticos que remetem diretamente à matriz sonora de 1970. Isso faz do álbum não apenas um tributo, mas uma conversa entre gerações. 

Produção e sonoridade

Como documento ao vivo, o disco é bem captado: a produção preserva a vibração de festival sem sacrificar clareza instrumental. Há espaço para solos longos, para a respiração coletiva do palco e para as pequenas falas que aproximam o ouvinte da experiência de estar naquele gramado do LOCKN'. Apesar disso, alguns críticos notaram que a “polidez” sonora em certos momentos tira um pouco da aspereza carismática que fez o Mad Dogs original tão fascinante. É uma escolha estética — e, como tal, polêmica. 

Recepção crítica (síntese)

As reações da imprensa musical foram majoritariamente calorosas, com resenhas celebrando a coragem do projeto e o nível dos intérpretes, enquanto vozes mais céticas lembraram a impossibilidade de reproduzir a figura singular de Joe Cocker e questionaram se algumas soluções contemporâneas acrescentam ou suavizam demais a aresta do original. Publicações especializadas elogiaram a performance coletiva e as densas camadas de som; outras ponderaram que, para alguns puristas, o tributo nunca superará o peso histórico do registro de 1970. 

Conclusão

Mad Dogs & Englishmen Revisited não pretende ser a versão definitiva do clássico — e não deveria. Ao invés disso, o álbum assume seu lugar como um gesto generoso: uma tentativa bem-sucedida de traduzir para o presente a energia coletiva daquele encontro mítico entre rock, soul e gospel. Há falhas — inevitáveis em empreitadas dessa escala —, mas a honestidade interpretativa, a qualidade instrumental e o cuidado com a produção fazem deste registro um documento importante para entender como a música popular revisita e re-significa a sua própria história.

Nota final (subjetiva): um disco para ouvir alto, de preferência em noites em que a saudade do palco e a curiosidade histórica caminhem juntas.

Faixas e participações

  1. The Letter — ft. Susan Tedeschi
  2. Darling Be Home Soon — ft. Susan Tedeschi & Doyle Bramhall II
  3. Dixie Lullaby — ft. Doyle Bramhall II
  4. Sticks and Stones — ft. Chris Robinson
  5. Girl From the North Country — ft. Claudia Lennear
  6. Let’s Go Get Stoned — ft. Susan Tedeschi
  7. Feelin' Alright — ft. Dave Mason & Anders Osborne
  8. She Came In Through the Bathroom Window — ft. Warren Haynes & Anders Osborne
  9. Bird On The Wire — ft. Rita Coolidge & Doyle Bramhall II
  10. The Weight — ft. Rita Coolidge, Pamela Polland, Susan Tedeschi, Claudia Lennear & Doyle Bramhall II
  11. Delta Lady — ft. John Bell
  12. Space Captain — ft. Susan Tedeschi & Chris Robinson
  13. With A Little Help From My Friends — ft. Chris Robinson, Susan Tedeschi, Dave Mason & Doyle Bramhall II
  14. The Ballad of Mad Dogs and Englishmen — (sem participação creditada / apresentação coletiva)

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