Sonny Boy Williamson II: Rice Miller — o mestre da gaita que viveu entre a lenda e a controvérsia

Sonny Boy Williamson II: Rice Miller — o mestre da gaita que viveu entre a lenda e a controvérsia



Sonny Boy Williamson II — nascido Aleck/Alex “Rice” Miller e conhecido por muitos nomes ao longo da vida — é uma das figuras mais fascinantes e contraditórias do blues americano. Sua gaita é voz, oração, ironia e desafio: atravessou rádios regionais, sessões em Chicago e platôs europeus, e deixou canções que voltariam a ecoar por décadas. Neste artigo, contamos a vida e a obra de Rice Miller, esclarecemos a confusão com Sonny Boy Williamson I e explicamos as controvérsias que envolvem o uso do nome que o imortalizou.

Quem foi Rice Miller — o homem por trás do apelido

Rice Miller era um contador de histórias que respirava blues. Filho de uma família do Mississippi rural, adotou – ao longo dos anos – vários nomes artísticos, entre eles Rice, Little Boy Blue e, finalmente, Sonny Boy Williamson. Seu passado direto é difícil de fixar: datas e locais de nascimento variam conforme fontes e relatos orais. Essa imprecisão não é acidente, mas parte do personagem que ele mesmo ajudou a construir — um homem que sabia, melhor do que muitos, como fabricar sua própria mitologia.

Musicalmente, Miller destacou-se como harmonicista e vocalista. Sua gaita não era apenas acompanhamento: era protagonista. Em gravações e apresentações ao vivo, sua técnica, fraseado e sensibilidade narrativa ajudaram a redefinir a gaita no blues pós-guerra, influenciando gerações de harpistas.

Do Mississippi a Chicago: a jornada musical

Rice Miller começou a ganhar público em programas de rádio regionais e casas noturnas do sul dos Estados Unidos. Eventualmente migrou para centros maiores, gravou para selos como Trumpet e, mais tarde, teve grande exposição em Chicago, ao assinar com a gravadora Checker e gravar com músicos célebres da cena — entre eles, nomes que ajudaram a compor a paisagem sonora do blues urbano.

Foi em sessão de gravação para a Chess/Checker que Miller encontrou músicos de alto calibre que o elevaram: pianos, guitarras e baixo que pavimentaram o espaço para sua gaita brilhar. Canções como "Don't Start Me Talkin'" (lançada em meados dos anos 1950) mostraram que ele sabia construir refrões afiados, ironia e presença radiofônica — elementos que o tornaram popular nas paradas de R&B.

Músicas que ficaram: repertório e legado

Entre suas gravações mais conhecidas estão "Don't Start Me Talkin'", "Help Me", "Bring It On Home" e versões que atravessariam décadas por meio de releituras. Algumas de suas interpretações ganharam novo impulso quando músicos de rock e do blues britânico e americano as retomaram nas décadas seguintes. Isso consolidou a importância de Miller não apenas como intérprete, mas como um nó de enlace entre tradições locais e a indústria musical em expansão.

O legado musical de Rice Miller está tanto nas suas gravações quanto em sua habilidade de ensinar pelo exemplo: harmonicistas como James Cotton citariam sua influência, e seu fraseado permaneceu uma referência técnica e poética para quem estuda a gaita até hoje.

Esclarecendo a confusão: Sonny Boy Williamson I x Sonny Boy Williamson II

Uma das questões que mais rende curiosidade é a relação — ou melhor: a ausência de relação — entre os dois Sonny Boy Williamson. Sonny Boy Williamson I foi John Lee Curtis Williamson, um harmonica player e cantor nascido em outra família e cuja carreira floresceu nos anos 1930 e 1940. Ele gravou sob esse nome e faleceu antes que Rice Miller alcançasse notoriedade nacional nos anos 1950.

Rice Miller passou a usar o mesmo nome em apresentações e transmissões radiofônicas. Isso gerou e ainda gera confusão — alguns acreditaram que se tratava do mesmo homem; outros viram uma apropriação intencional. Por isso historiadores do blues e críticos passaram a distinguir os dois como Sonny Boy I e Sonny Boy II, rotulagem que ajuda o leitor contemporâneo a separar discografias, estilos e trajetórias.

A controvérsia do nome: identidade, marketing e mito

Por que Rice Miller adotou o nome já famoso? As motivações foram múltiplas e entrelaçadas: conveniência comercial, estratégia de marketing e, possivelmente, um jogo de identidade. Proprietários de estações de rádio e promotores por vezes acreditavam que vincular um artista ao nome conhecido atraía público — e Miller, que era astuto em manejar sua imagem, não se furtou a isso.

Ao mesmo tempo, há relatos de que Miller alegava ser o “verdadeiro” Sonny Boy, ou que tinha usado o nome antes do outro Williamson. Essas afirmações alimentaram a confusão e, em alguns casos, revolta entre fãs e colegas. No entanto, para muitos ouvintes, o que importava era o som: Miller podia ser considerado um impostor no nome, mas era inegavelmente original na música.

Essa ambiguidade entre identidade e autenticidade é parte crucial para entender por que Rice Miller permanece tão evocativo na memória do blues — um homem que, ao mesmo tempo em que alimentou controvérsias, produziu arte que resiste ao tempo.

O homem no rádio: King Biscuit Time e a imagem pública

Uma peça importante na carreira de Miller foi sua presença em programas de rádio regionais, sobretudo em emissoras que transmitiam blues e entretenimento para comunidades afro-americanas do Delta e do sul. Esses programas ampliaram seu alcance e, muitas vezes, ajudaram a consolidar a imagem pública que ele projetava: certeira, mordaz, às vezes brava, sempre cheia de personalidade.

Além disso, tours para o público europeu nos anos 1960 mostraram que a aura de Miller transcendia fronteiras. Lá, ele foi visto tanto como símbolo do “blues autêntico” quanto como personagem carismático, vestido de forma elegante e pronto para encantar audiências que, até então, conheciam o blues por discos e folclores importados.

Fim de uma vida, começo de uma lenda

Rice Miller morreu em meados da década de 1960. As circunstâncias exatas e as datas, assim como sua idade real, repetem a pauta de incertezas que marcou sua existência: diferentes documentos e relatos dão versões diversas sobre o ano de nascimento. Mas a força de sua obra e a clareza de sua gaita permanecem firmes — a música supera as lacunas da biografia.

Ao ser enterrado, as histórias e a música de Miller já haviam plantado sementes que germinariam em colegas músicos, gravações, tributos e estudos. Hoje, sua figura é celebrada tanto por quem tenta desfazer mal-entendidos quanto por quem simplesmente prefere ouvi-lo e deixá-lo tocar.

Por que Sonny Boy Williamson II ainda importa?

Porque Rice Miller condensou contradições essenciais do blues: tradição e invenção, oralidade e indústria, mito e realidade. Sua gaita tem o poder de dizer o que a palavra hesita em pronunciar — e, por isso, suas gravações são leituras obrigatórias para quem quer entender a música afro-americana do século XX.

Ele nos ensina que autenticidade não é apenas verdade documental; é energia, postura, invenção. Miller transformou um nome em provérbio e uma história em canção. Mesmo quando o nome foi discutido, sua música falou mais alto.

Pergunta ao leitor

Qual dos dois Sonny Boy você prefere? Pergunta difícil, mas deliciosa! Se for pelo impacto pioneiro, Sonny Boy Williamson I (John Lee Curtis) abriu caminho, ajudou a definir o papel da gaita no blues moderno e inspirou incontáveis músicos de Chicago. Mas se for pela força artística e pelo carisma, eu tendo a escolher Sonny Boy Williamson II (Rice Miller): mais teatral, mais irônico, dono de um fraseado inconfundível e de uma persona quase literária, cheia de truques e mistérios.

No fim, talvez seja injusto escolher — o primeiro desenhou o mapa, o segundo caminhou por ele e pintou novas cores.

Rice Miller, o Sonny Boy Williamson que muitos chamam de II, é um enigma que toca. Foi homem de rádio e de palcos, de gravações emblemáticas e de histórias que desafiam a memória. A confusão com Sonny Boy Williamson I é parte da sua biografia — mas não apaga a singularidade do seu som. Ao ouvir Don't Start Me Talkin', Help Me ou qualquer outro registro seu, percebe-se que, independentemente do nome que usou, Rice Miller deixou sua marca definitiva no blues.

Para o leitor do Todo Dia Um Blues: ouça com atenção a gaita — nela estão tanto a técnica quanto a vida, e toda a pequena ou grande falsidade que um homem pode precisar para virar lenda.


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