Mose Vinson e Booker T. Laury: Mestres do Piano Blues de Memphis
Mose Vinson e Booker T. Laury: Mestres do Piano Blues de Memphis
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Mose Vinson |
No coração pulsante do blues, em meio ao calor úmido e às ruas cheias de histórias de Memphis, dois homens fizeram do piano não apenas um instrumento, mas uma extensão de suas almas. Mose Vinson e Booker T. Laury representam a força de uma tradição que resiste ao tempo, a vertente mais visceral e sincera do piano blues. Suas trajetórias, marcadas pela luta, pela demora em serem reconhecidos e pelo vínculo profundo com a cultura popular do sul dos Estados Unidos, se encontram no álbum Memphis Piano Blues Today, uma obra que eterniza a grandeza discreta desses mestres do teclado.
Raízes no Mississippi e em Memphis
Mose Vinson nasceu em 1917, no Mississippi, cercado pela pobreza e pela dureza do campo, mas também pelos cantos de trabalho, pelos hinos das igrejas e pelas melodias que atravessavam os juke joints. Autodidata, aprendeu a tocar piano ainda menino, desenvolvendo cedo o estilo barrelhouse, cheio de batidas fortes e ritmos que desafiavam qualquer corpo a permanecer imóvel. O piano era, para Vinson, um espaço de liberdade, uma chance de transformar a dureza da vida em alegria e em cadência.
Já Booker T. Laury, nascido em Memphis em 1914, trilhou um caminho semelhante. Filho da cidade que se tornaria a capital do blues moderno, cresceu ouvindo Memphis Slim, seu amigo de infância, e foi profundamente influenciado pelos grandes pianistas que circulavam pela região: Roosevelt Sykes, Sunnyland Slim e Speckled Red. Laury era um garoto que encontrava nas teclas do órgão doméstico seu primeiro território de invenção, e que logo se lançou aos bares e clubes de Memphis para ganhar a vida com seu toque vigoroso.
O som do barrelhouse e do boogie-woogie
O estilo de ambos se insere no universo do boogie-woogie e do piano barrelhouse, formas que nasceram nos anos 1920 e 1930 em salões barulhentos, onde o piano precisava ser percussivo para se impor sobre as vozes, as conversas e os copos de whisky batendo nas mesas. Eram sons de festa, mas também de resistência. Vinson e Laury herdaram esse legado e o transformaram em linguagem própria.
Mose Vinson tinha uma cadência introspectiva. Suas interpretações de temas como 44 Blues exibem uma delicadeza escondida por trás do ritmo forte, como se em cada nota estivesse uma confissão. Já Booker T. Laury, conhecido por perder o dedo mindinho da mão esquerda em um acidente com uma serra, compensava a limitação com um vigor rítmico ainda maior. Seu toque era amplo, poderoso, e ele parecia abraçar o teclado como quem luta com um destino teimoso. Mesmo com nove dedos, produziu algumas das mais intensas interpretações do piano blues de Memphis.
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Booker T. Laury |
Memphis, a cidade que os moldou
O destino desses dois homens se confunde com a história de Memphis. Vinson chegou à cidade nos anos 1930, atraído pela energia do lugar. Trabalhou como zelador no Taylor Boarding Home, próximo ao lendário estúdio da Sun Records. Não demorou para que Sam Phillips o chamasse para sessões, e assim Vinson se tornou coadjuvante em gravações de nomes como James Cotton e Jimmy DeBerry. Também deixou registradas algumas faixas próprias, que só viriam a ser lançadas décadas mais tarde, mas que já revelavam sua força como compositor e intérprete.
Laury permaneceu em Memphis por toda a vida. Tocava nos bares, ensinava aos jovens, vivia uma carreira que parecia destinada à invisibilidade, até que o reconhecimento tardio lhe trouxe gravações e viagens. No entanto, Memphis foi sempre sua base, seu palco cotidiano, a cidade que o viu transformar as dores da vida em música intensa.
Reconhecimento tardio
Nem Vinson nem Laury alcançaram fama na juventude. Enquanto muitos contemporâneos se projetaram nacionalmente, eles permaneceram como lendas locais, respeitados por músicos, mas pouco conhecidos fora do circuito do sul. Foi apenas nas últimas décadas de suas vidas que tiveram a chance de gravar discos inteiros, de viajar para a Europa, de mostrar ao mundo que o piano blues de Memphis ainda respirava forte.
Booker T. Laury lançou seu primeiro álbum já em 1981, aos 67 anos de idade. Antes disso, havia tocado incansavelmente, mas sem nunca entrar num estúdio para registrar sua obra. O mesmo aconteceu com Mose Vinson, que só teve seu primeiro disco completo, Piano Man, em 1997, pouco antes de sua morte. Essa demora não apaga, porém, a profundidade de suas músicas: pelo contrário, dá a elas uma aura de resistência, de quem nunca desistiu do blues.
O encontro em Memphis Piano Blues Today
O álbum Memphis Piano Blues Today, lançado em 1990, é o testemunho maior da grandeza de Mose Vinson e Booker T. Laury. Gravado em Memphis, o disco reúne 16 faixas, sendo oito de cada pianista, e funciona como um retrato duplo de dois mestres que, embora com estilos distintos, compartilham a mesma raiz. Laury gravou suas músicas no Peabody Hotel, enquanto Vinson registrou suas performances em casa, o que dá ao disco uma aura íntima, quase doméstica.
As faixas de Booker T. Laury
- Next Time You See Me
- Big Legged Woman
- Blues With a Feeling
- Booker T.'s Memphis Blues
- Night Time Is the Right Time
- Sweet Root Man
- You Can Go Your Way
- Booker's Boogie
Nessas faixas, Laury revela sua potência, com destaque para Big Legged Woman, em que o piano ganha corpo quase orquestral, e Booker's Boogie, puro virtuosismo. Seu blues é expansivo, vibrante, e mostra como Memphis moldou um estilo energético e cheio de swing.
As faixas de Mose Vinson
- Blues Jump the Rabbit
- Tell Me Like It Is
- Boogie Woogie Blues
- Good Morning Memphis
- 44 Blues
- 4 O'Clock Blues
- You're Not Too Old
- Lost My Mule Blues
Com Vinson, o clima é outro: mais intimista, mais profundo. Sua interpretação de 44 Blues é um dos momentos altos do álbum, carregada de emoção e de uma tradição que remonta às primeiras gravações de blues no Delta. Já Good Morning Memphis é uma homenagem à cidade que lhe deu abrigo e palco.
Legado e memória
O valor de Memphis Piano Blues Today está não apenas nas músicas, mas no simbolismo: é a celebração de dois artistas que, apesar de não terem tido reconhecimento em vida como mereciam, deixaram uma marca indelével na história do blues. O disco funciona como documento e como poesia, como registro e como inspiração. Mostra que o piano blues não é apenas um estilo antigo, mas uma linguagem viva, capaz de atravessar gerações.
Mose Vinson faleceu em 2002, vítima de complicações da diabetes. Booker T. Laury partiu alguns anos antes, em 1995. Ambos tiveram mortes discretas, mas seu som continua reverberando. A cada nota de 44 Blues, a cada batida de Booker's Boogie, é possível ouvir não apenas o talento dos dois, mas também as ruas de Memphis, os salões barulhentos, as igrejas do Mississippi e as histórias de luta e sobrevivência do povo negro no sul dos Estados Unidos.
A importância de redescobri-los
Em um mundo onde o blues muitas vezes se resume aos nomes mais famosos, recordar e ouvir Mose Vinson e Booker T. Laury é um ato de justiça histórica. Eles são guardiões de uma tradição que não se rendeu ao esquecimento. Seus discos, em especial Memphis Piano Blues Today, são aulas vivas sobre como o blues pode ser, ao mesmo tempo, festivo e melancólico, poderoso e delicado.
Para quem ama o piano, esse álbum é um tesouro. Para quem ama o blues, é uma necessidade. E para quem busca compreender a alma de Memphis, é uma chave. Escutá-lo é abrir uma janela para uma época em que a música nascia diretamente da experiência, sem filtros, sem fórmulas, apenas da vida.
Conclusão
Mose Vinson e Booker T. Laury talvez não sejam nomes estampados em camisetas ou pôsteres, mas sua importância é imensa. Representam a força da resistência cultural, a beleza da simplicidade e a riqueza da tradição. O álbum Memphis Piano Blues Today os coloca lado a lado, não como rivais, mas como irmãos de trajetória, duas vozes diferentes de um mesmo coro. Escutá-lo é mergulhar na essência do blues, é sentir a cidade de Memphis respirar por meio das teclas de dois homens que transformaram dor em música, silêncio em ritmo, e anonimato em eternidade.
No fim das contas, o blues é isso: a verdade contada em notas. E ninguém contou essa verdade melhor do que os velhos mestres do piano. Booker T. Laury e Mose Vinson, com seus dedos calejados, deixaram gravada para sempre a alma de Memphis.
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