Luther Allison – O Mensageiro de Fogo do Blues
Luther Allison – O Mensageiro de Fogo do Blues
Há nomes no blues que não se contentam em apenas soar nos alto-falantes. Eles atravessam o tempo, arrebentam a distância e caem sobre nós como uma tempestade elétrica. Luther Allison foi um desses nomes — e nesse 12 de agosto, lembramos o dia em que sua guitarra silenciou, mas sua chama se recusou a apagar. Se você acompanha o Todo Dia Um Blues, sabe que já mergulhamos na trajetória de seu filho, Bernard Allison, herdeiro legítimo dessa energia incandescente. Hoje, voltamos a origem dessa força, ao homem que transformou o blues em pura combustão.
Da poeira do Arkansas ao brilho de Chicago
Luther nasceu em 17 de agosto de 1939, em Widener, Arkansas, numa época em que o blues era mais do que música — era sobrevivência. Criado em uma família de 15 irmãos, aprendeu cedo que a vida exigia coragem e resistência. Quando tinha 12 anos, sua família mudou-se para Chicago, o caldeirão onde o Delta se encontrava com a eletricidade e o suor das fábricas. Foi ali que Allison, ainda adolescente, começou a observar e absorver o que via nas esquinas e clubes: Muddy Waters, Howlin’ Wolf, Jimmy Reed — deuses em carne e osso, moldando seu destino.
Ele não foi daqueles que chegaram pedindo licença. Luther Allison subiu aos palcos com a segurança de quem sabia que tinha algo a dizer. E dizia. Com sua guitarra cortante e voz carregada de urgência, logo chamou atenção de gigantes, tornando-se presença constante em jams e sessões improvisadas na Windy City. Sua abordagem era crua, mas também elegante. Misturava a tensão do blues do Mississippi com a energia quase rock do circuito urbano, criando um som que ninguém podia ignorar.
A ascensão e o grito que cruzou o Atlântico
No final dos anos 60, Luther já era nome sólido na cena de Chicago. Seu estilo incendiário e presença de palco hipnótica o levaram a abrir shows para nomes consagrados e a participar de festivais, incluindo o Ann Arbor Blues Festival, em 1969, onde roubou a cena. Sua carreira deu um salto quando foi contratado pela Motown Records — um feito raro para um artista de blues, já que a gravadora era mais conhecida pelo soul e R&B. Foi sob esse selo que gravou um de seus trabalhos mais marcantes: Bad News Is Coming.
Nos anos 70, Luther começou a conquistar também a Europa. Enquanto muitos artistas de blues lutavam para manter público nos Estados Unidos, Allison encontrou no Velho Continente uma plateia sedenta por autenticidade. França, Alemanha e Suíça se tornaram pontos estratégicos de sua trajetória, e ele passou longos períodos vivendo e tocando por lá. A crítica europeia o acolheu como um herói, e ele respondeu com shows longos, apaixonados, que às vezes ultrapassavam as três horas de duração.
Um artista que tocava com todo o corpo
Assistir Luther Allison ao vivo era como estar diante de um furacão controlado. Ele não apenas tocava guitarra — ele a atacava, acariciava, fazia chorar e gritar. Subia no público, caminhava pela plateia, dançava enquanto soltava solos intermináveis. O suor escorria, mas o sorriso permanecia. Era impossível separar o homem da música. Ele não performava o blues; ele o vivia. Seu lema era simples e direto: "Leave your ego, play the music, love the people" — deixe seu ego, toque a música, ame as pessoas.
Essa entrega total se refletia também nas composições. Allison escrevia canções sobre amor, perda, injustiça, mas também sobre resistência e esperança. Ele sabia que o blues não era apenas lamento, mas também celebração e sobrevivência.
O reencontro com a América
Apesar do sucesso na Europa, Luther nunca deixou de olhar para os Estados Unidos. No início dos anos 90, já consagrado do outro lado do Atlântico, ele decidiu retornar com mais força ao mercado americano. Assinou com a Alligator Records e lançou álbuns que o colocaram novamente no radar do blues mundial, como Bad Love (1994) e Blue Streak (1995). A crítica americana, antes relutante, se rendeu: Luther Allison não era apenas mais um guitarrista de Chicago; era uma das vozes mais importantes e intensas de sua geração.
Entre 1994 e 1997, ganhou 10 prêmios no W.C. Handy Awards (hoje conhecidos como Blues Music Awards), consolidando seu nome no panteão dos grandes. E tudo isso sem perder a chama que o tornara conhecido: aquela energia bruta, a vontade de se entregar completamente a cada nota.
12 de agosto de 1997 – o dia em que o fogo se apagou
Luther Allison estava no auge quando um diagnóstico devastador mudou tudo. Descobriu que tinha um câncer de pulmão avançado. O impacto foi profundo, mas, mesmo debilitado, ele seguiu se apresentando enquanto podia. Sua última turnê foi marcada por momentos de pura emoção, com fãs e colegas cientes de que presenciavam um adeus. No dia 12 de agosto de 1997, Luther partiu, deixando um vazio enorme no mundo do blues. Tinha apenas 57 anos.
Mas, como acontece com os grandes, sua morte não significou silêncio. Seus discos continuam vivos, e sua influência se espalha através de artistas como seu filho Bernard Allison, que mantém a chama acesa com a mesma intensidade e respeito pelo legado do pai.
O legado em faixas e suor
Luther Allison deixou uma discografia vibrante, marcada por trabalhos que atravessam décadas e continentes. Entre seus discos mais emblemáticos estão Love Me Mama (1969), Bad News Is Coming (1972), Bad Love (1994), Blue Streak (1995) e Reckless (1997). Cada um desses álbuns mostra uma faceta diferente de um artista que se recusava a ser previsível. Do blues cru ao mais elaborado, do groove urbano às baladas carregadas de sentimento, Allison dominava todos os territórios com a mesma paixão.
Bad News Is Coming – um marco da Motown Blues
Gravado em 1972, Bad News Is Coming é uma obra-prima que desafia rótulos. Lançado pela Motown, o disco apresenta Luther Allison em estado puro: um pé fincado no blues tradicional de Chicago e outro explorando grooves mais contemporâneos. A faixa-título é um blues lento e carregado de emoção, quase um lamento, mas com a força de um trovão. Já Raggedy and Dirty e Cut You A-Loose revelam seu lado mais acelerado e feroz, enquanto a releitura de Little Red Rooster mostra reverência às raízes.
A edição original trazia sete faixas: “The Little Red Rooster”, “Evil Is Going On”, “Raggedy And Dirty”, “Rock Me Baby”, “Bad News Is Coming”, “Cut You A-Loose” e “Dust My Broom”. Em 2001, o álbum ganhou reedição com quatro faixas bônus: The Stumble, Sweet Home Chicago, It’s Been A Long Time e Take My Love (I Want To Give It All To You).
Produzido por Joe Peraino e gravado com músicos como Andrew Smith (baixo e bateria), Ray Goodman (guitarra base), Paul White (piano) e Garfield Angove (harmônica), o álbum é considerado um dos melhores registros de Chicago blues do início dos anos 70. Não é apenas um disco, mas um retrato de um artista que sabia transformar cada compasso em declaração de vida.
Um eco que não se cala
Passados todos esses anos, ouvir Luther Allison é como abrir uma janela para o vento quente e carregado de histórias do blues. Sua guitarra ainda arde, sua voz ainda comove, e seu lema ainda ecoa: “Leave your ego, play the music, love the people”. Ele foi, e sempre será, o mensageiro de fogo do blues — um artista que não se limitou a tocar músicas, mas que viveu para incendiá-las de emoção.
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