Left Hand Frank: a mão canhota do South Side que brilhou no Knickerbocker

Left Hand Frank: a mão canhota do South Side que brilhou no Knickerbocker



Há artistas que atravessam a noite sem pedir licença, deixando apenas o rastro do timbre e da intenção. Left Hand Frank — Frank Craig no batismo — foi um desses bluesmen discretos, raros, que entenderam cedo que o blues também é uma arte de economia: dizer muito com pouco, tocar fundo sem levantar a voz. Em um universo de guitarras em brasa e egos em volume máximo, ele preferiu a estrada lateral, o clube modesto, o fraseado sinuoso. E, graças a um palco fora do eixo, captou seu momento definitivo: Live at the Knickerbocker Cafe.

O estilo: frase curta, verdade longa

Left Hand Frank não era de pirotecnia. Seu idioma vinha das esquinas do South Side de Chicago, de shuffles que caminham por dentro, slow blues que respiram entre um acorde e outro, e instrumentais que dizem tudo sem pronunciar uma palavra. O ataque de palheta era econômico; o vibrato, paciente; a afinação, conversando com cada sílaba do groove. Mais artesão que acrobata, mais cozinheiro de fogo baixo que churrasqueiro de espetáculo, ele entendeu que o blues é também silêncio e espaço.

O palco certo, a noite certa

Westerly, Rhode Island. O Knickerbocker Café — território lendário, casa de encontros improváveis e registros decisivos. É ali, longe dos holofotes de Chicago, que Left Hand Frank cristaliza seu som em um disco que virou documento: Live at the Knickerbocker Cafe. Lançado originalmente em 1992, o álbum tem o cheiro do palco: madeira vibrando, copos tilintando, plateia respirando junto. Nada de verniz: só banda, sala e verdade.

Há quem chame o álbum de “direto e sem exibicionismo”. É um elogio. O registro celebra o pulo do gato do blues: o balanço que não tropeça, o fraseado que não se explica, a energia que corre embaixo da pele. Em vez de solos quilométricos, Frank trabalha motivos curtos, riffs que falam e respondem, como se cada compasso fosse uma conversa de boteco entre velhos amigos.

As faixas: um roteiro de palco

No repertório, clássicos alheios, autorais espertos e instrumentais com DNA de pista. A sequência flui como um set de clube — abre o sorriso, esquenta a sala, desce o coração, volta a acender.

  • Jammin' With Frank — A senha da noite. Tema de abertura com guitarra à frente e banda colada, groove enxuto que apresenta o anfitrião.
  • Last Nite (instrumental) — O conhecido vamp se torna vitrine de dinâmica e diálogo; Frank diz sem dizer.
  • Linda Lu — Canção de estrada, balanço de meia-luz, voz leve, guitarra em sussurros.
  • Honky Tonk (instrumental) — Clássico de bar que vira dança de contrabaixo e bateria; guitarra pavimenta, não atropela.
  • One Room Country Shack — Blues de uma janela só: lento, sincero, com notas que pesam mais que parágrafos.
  • Blue Room Shuffle (instrumental) — O nome entrega: shuffle de sala azul, de cintura solta e pulso reto.
  • South Side Hop (instrumental) — Cartão-postal de Chicago: salto curto, ataque preciso, sorriso no canto da boca.
  • Surfin' With Frank (instrumental) — Brincadeira elegante: reverbera surf sem perder a alma do blues.
  • How Long — A pergunta eterna do gênero. Tempo largo, tensão bonita entre voz e cordas.
  • Last Nite (vocal version) — Fecha o círculo: o tema retorna com palavra, e a banda pousa macio.

Resultado? Um álbum que se escuta como se entra num clube: cumprimenta, pede uma bebida, encosta no balcão e deixa o corpo acompanhar a banda. Não há pressa. É blues para quem gosta de ver a música crescer por dentro.

Quem está no palco

Parte do encanto está no entrosamento de um quinteto que toca com ouvido e humildade:

  • Left Hand Frank — guitarra e voz
  • Dimestore Fred — harmônica
  • Michael “Mudcat” Ward — baixo
  • Peter “Hi-Fi” Ward — guitarra de acompanhamento
  • Ted “Houserocking” Harvey — bateria

É cozinha de confiança: baixo que caminha, bateria que empurra sem atropelar, harmônica que colore. A segunda guitarra de Peter Ward dá alicerce, e Frank tem espaço para respirar — e brilhar.

Ficha técnica e lançamento

Live at the Knickerbocker Cafe saiu em CD em 1992, com pouco mais de 46 minutos de música. O registro ganharia ainda uma edição posterior em CD, mantendo o caráter cru e a proposta de palco. É um daqueles discos que não pedem remaster milagroso: o som é honesto, de sala, e isso é parte do patrimônio.



Por que este álbum importa

Porque guarda um blues que não se explica com adjetivos: ele acontece quando a banda encontra o compasso certo e a plateia escuta com o corpo. Porque revela um guitarrista que escolheu a sinceridade ao brilho, o feeling à pirotecnia. E porque registra uma estética que, hoje, parece rara: música sem ansiedade, tocada por gente de palco.

Vida e caminho: o ofício do coadjuvante que vira protagonista

Left Hand Frank passou boa parte da carreira como músico de confiança — aquele que chega, liga o amp e resolve. Nos bastidores, seu nome corria entre quem realmente toca: os que reconhecem a beleza do simples, o valor do tempo, a grandeza de uma boa nota tocada na hora certa. Live at the Knickerbocker Cafe é o instante em que esse ofício silencioso sobe à ribalta: o coadjuvante veste o papel principal e mostra o coração do seu blues.

O legado em uma frase

Quando a mão canhota de Frank encosta nas cordas, a sala muda de clima. O lance aqui não é velocidade. É conversa, respeito ao compasso, a coragem de deixar o silêncio trabalhar. É assim que o blues envelhece bem: sem pressa, com verdade.

Para guardar

  • Grande momento: o crescendo paciente de One Room Country Shack.
  • Instrumental de bolso: o balanço redondo de Blue Room Shuffle.
  • Encerramento com assinatura: a volta de Last Nite em versão vocal, pouso perfeito para a noite.

Em uma linha

Se você busca o blues sem maquiagem — guitarra que fala baixo e diz tudo — este disco é o seu lugar na mesa.

Tracklist – Live at the Knickerbocker Cafe

  1. Jammin' With Frank
  2. Last Nite (instrumental)
  3. Linda Lu
  4. Honky Tonk (instrumental)
  5. One Room Country Shack
  6. Blue Room Shuffle (instrumental)
  7. South Side Hop (instrumental)
  8. Surfin' With Frank (instrumental)
  9. How Long
  10. Last Nite (vocal version)

O blues de Left Hand Frank é caminho de madrugada: a cidade cochicha, a guitarra aquece o coração como as válvulas do amplificador, e a banda segura a mão do ouvinte até o último acorde. Quando a porta do Knickerbocker se fecha, a noite continua tocando dentro da gente. Poucos meses depois daquela gravação, Frank partiria em silêncio, em 1992. Por isso, este álbum não é só um registro ao vivo: é seu testamento musical, a fotografia sonora de um artista que  deixou nas cordas o mapa completo de sua alma blues.


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Marcos Ottaviano And His Blues Band: 35 Anos de Carreira

Ain’t Done With The Blues: Buddy Guy aos 89 Anos Ainda Toca com o Coração em Chamas

Nuno Mindelis: Blues, não só para o Brasil!