Jimmy DeBerry: o bluesman que atravessou gerações
Jimmy DeBerry: o bluesman que atravessou gerações
No vasto panteão do blues, há nomes que brilham como constelações e outros que, embora discretos, sustentam o firmamento com uma luz firme e essencial. Jimmy DeBerry é desses últimos. Um músico que viveu com a dignidade dos sobreviventes e a poesia dos que transformam dor em música. Sua trajetória, marcada pelo blues de Memphis, atravessa décadas de resistência, reinvenção e encontros que deixaram marcas profundas na história do gênero.
As raízes de um músico errante
Jimmy DeBerry nasceu em 1911, no Arkansas, mas cedo se mudou para Memphis, onde o blues vibrava em cada esquina, em cada botequim esfumaçado, em cada quintal improvisado em palco. Autodidata, aprendeu sozinho a dedilhar o ukulele, o banjo e a guitarra, instrumentos que se tornariam extensão de sua alma. Ainda jovem, conviveu com nomes lendários como Will Shade, Charlie Burse, Frank Stokes e Jack Kelly, absorvendo de cada um um pedaço da tradição oral e melódica que alimentava o blues urbano do sul.
Foi também em Memphis que o jovem DeBerry conheceu o som inconfundível da gaita de um garoto chamado Walter Horton, que viria a se tornar uma das maiores bocas de harmônica do blues. Esse encontro seria apenas o prelúdio de uma parceria que, anos depois, ficaria registrada em gravações fundamentais para a Sun Records.
Um grave acidente St. Louis
Aos 23 anos, em 1934, um acidente de trem em East St. Louis quase interrompeu sua história. Jimmy perdeu parte da perna direita, mas nunca perdeu o compasso do blues. A prótese improvisada tornou-se sua companhia silenciosa, mas foi a música que o sustentou. Como muitos artistas do gênero, ele conheceu cedo a dureza da vida, e talvez por isso sua música carregasse a densidade da experiência, a honestidade do sofrimento e o humor resiliente que o blues sempre soube cultivar.
Memphis Playboys e os primeiros registros
Em 1939, DeBerry fundou os Memphis Playboys e gravou pela Vocalion Records. Era o blues já de olhos voltados para as pistas de dança, atualizando o espírito do hokum dos anos 20, com letras irônicas, cheias de malícia e ritmos pulsantes. Nesse período, fixou-se como figura importante na cena de Memphis, mesmo sem o brilho midiático que outros alcançaram.
Durante mais de uma década, atuou entre St. Louis, Jackson e Memphis, tocando em rádios locais, acompanhando nomes como Willie Nix e mantendo uma ligação estreita com Walter Horton. O palco podia ser uma taberna apertada ou o microfone de uma emissora, mas para Jimmy DeBerry a música nunca deixou de ser seu lugar de verdade.
As sessões na Sun Records
Em 1953, Jimmy entrou no lendário estúdio da Sun Records, onde Elvis Presley, B.B. King e Howlin’ Wolf também moldaram seus destinos. Ali registrou duas sessões memoráveis. A primeira foi com Walter Horton, em que gravaram a faixa "Easy", um instrumental inspirado no sucesso de Ivory Joe Hunter. A segunda trouxe a canção "Time Has Made a Change", uma balada profunda acompanhada pelo piano elegante de Mose Vinson. Essas gravações são pequenas joias que revelam a versatilidade de DeBerry, transitando entre a intensidade do blues instrumental e a melancolia das baladas.
O reencontro com Horton
No início dos anos 70, quando o blues já atravessava oceanos e conquistava plateias na Europa, o produtor Steve LaVere reuniu DeBerry e Walter Horton para novas gravações. A ideia era recuperar a química da dupla, mas os tempos haviam mudado. Embora o resultado artístico fosse sólido, o sucesso comercial não veio. Mesmo assim, para os amantes do blues, essas sessões funcionam como um reencontro carregado de memória e de respeito mútuo.
O estilo e o legado
Jimmy DeBerry nunca foi uma estrela. Mas nem todos os homens do blues precisam ser. Seu estilo mistura a crueza do country blues com o refinamento crescente do blues urbano de Memphis. Suas canções, como "Party Line Blues" e "Take a Little Chance", mostram um músico capaz de atravessar épocas sem perder a autenticidade.
Seu legado está na capacidade de ter resistido, de ter feito música em meio a adversidades e de ter deixado registrado, ainda que em pequenos fragmentos, um pedaço da alma de Memphis. Ao ouvir suas gravações, é possível sentir o eco de um artista que não se curvou ao esquecimento. DeBerry foi um elo entre os pioneiros das ruas e a geração que levou o blues para os palcos internacionais.
O blues como resistência
A vida de Jimmy DeBerry é, por si só, uma metáfora do blues: um trem que atropela, um corpo que perde uma parte, mas uma alma que insiste em cantar. Seu nome pode não figurar no topo das paradas, mas seu som pulsa em cada acorde que ainda hoje ecoa das velhas fitas da Sun Records. Ele é a lembrança de que o blues não pertence apenas aos gigantes, mas também àqueles que, discretamente, sustentaram o gênero em cada esquina de Memphis, em cada rádio de Jackson, em cada taberna de St. Louis.
Jimmy DeBerry partiu em 1985, mas deixou atrás de si a certeza de que a grandeza do blues está na soma de todas as vozes — das mais famosas às mais anônimas — que, juntas, formam o coro indestrutível de um gênero que atravessa gerações.
Discografia essencial
- Party Line Blues – o espírito do blues direto e narrativo.
- Time Has Made a Change – balada marcada pelo piano de Mose Vinson.
- Easy – instrumental gravado com Walter Horton.
- Take a Little Chance – exemplo da vitalidade do seu estilo Memphis.
Redescobrir Jimmy DeBerry é mergulhar na força silenciosa de um artista que nunca se deixou apagar. Sua música é como cicatriz: marca dolorida, mas também testemunho de sobrevivência. E o blues, afinal, sempre foi isso — a arte de transformar feridas em canções.
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