Jimi Hendrix em “Slow Blues”: o lampejo final de um alquimista do som

Jimi Hendrix em “Slow Blues”: o lampejo final de um alquimista do som



Vinte de agosto de 1970, Nova York. A sala principal do Electric Lady respirava cores e curvas enquanto a fita corria. Jimi Hendrix, a Stratocaster ao peito como um animal vivo, desenhou um “Slow Blues” de bolso — pouco mais de um minuto e meio de brasa — antes que a máquina, caprichosa, engasgasse e cortasse o feitiço. Foi um instante: um azulado de madrugada engarrafado em celulóide magnético, desses que dizem mais sobre um artista do que muitas sessões inteiras. Em poucos dias, Jimi atravessaria o Atlântico para o Festival da Ilha de Wight. Em menos de um mês, calaria o mundo aos 27 anos.

A sessão de 20 de agosto: quando a fita respira e o blues sangra

O registro de “Slow Blues” carrega aquela beleza que só existe no entretempo: a guitarra fala baixo, dobra-se sobre si, procura a nota certa como quem procura um endereço antigo. É um retrato de estúdio sem maquiagem, o blues pelo avesso — timbre gordo, vibrato como onda curta, silêncio contando tanto quanto o som. O take é curto porque o gravador falhou; o mito, longo porque o que Jimi diz ali é um testamento: o blues foi sempre a casa, não importasse quão longe ele aventasse seu foguete psicodélico.

Electric Lady: a nave-mãe e o coração blueseiro

O Electric Lady não era apenas um estúdio; era o corpo acústico do sonho de Hendrix. Paredes curvas, luzes úmidas, um lugar desenhado para gravar como se respirasse. Ali, nos meses de junho a agosto de 1970, ele lapidou canções como “Freedom”, “Angel”, “Drifting” e “In From the Storm”. Mas entre os riffs de fogo e os cosmos de feedback, o que pulsa é o mesmo coração azul que o formou em Seattle: Muddy Waters e Elmore James ecoando na mão direita, B.B. King se insinuando no vibrato, o shuffle de Chicago envenenado por wah-wah.

Band of Gypsys: o pulso do groove, a raiz do blues

Com Billy Cox no baixo e Buddy Miles na bateria, a Band of Gypsys abriu uma avenida rítmica que reconectou Jimi à terra negra do blues. “Machine Gun” foi o clarão político, sim, mas por baixo da pólvora estava o lamento ancestral do Delta. Hendrix entendia o blues como língua-mãe: bastava afrouxar a mão direita, baixar o ganho, e o canto antigo voltava inteiro — ora febril, ora meditativo, sempre seu.

Antes e depois da Ilha de Wight

Quando subiu ao palco na Isla de Wight, na madrugada de 30 para 31 de agosto, Jimi levou consigo a bagagem daquela temporada no Electric Lady. O som viria com tropeços técnicos e transcendências — como sempre com Hendrix — mas a bússola apontava ao mesmo norte: o blues era a gravidade, e tudo que ele lançava ao espaço retornava, mais denso, ao chão das doze barras.



“Blues” (1994): a cartografia do azul em Hendrix

Anos depois, a coletânea Blues (1994) fixou em disco o mapa dessa pertença. Onze faixas gravadas entre 1966 e 1970 expõem o artista em sua cozinha: “Red House” como documento de identidade; “Hear My Train A Comin’” em versões que vão do aço de 12 cordas ao rugido elétrico; “Catfish Blues” acenando a Muddy; “Mannish Boy” e “Born Under a Bad Sign” reimaginadas como jams de fôlego; “Once I Had a Woman” e “Jelly 292” mostrando o prazer do improviso; “Voodoo Chile Blues” ampliando o laboratório. O álbum soa como uma visita guiada à oficina: ferramentas, limalhas, milagres. É blues puro, mas filtrado por uma mente que enxergava cores onde os outros viam preto e branco.

  • Por que importa? Porque revela o Hendrix compositor do gesto: a nota que se estica até virar história, a pausa que vira respiração, o ruído que vira textura.
  • O que escutar com lupa? A articulação do vibrato lento; a forma como Jimi “canta” com a guitarra antes de cantar com a voz; o casamento entre tônus grave e agudos líquidos.
  • O que reencontra? A família inteira do blues: campo, cidade, barulho de fábrica e vento no milharal, o sermão da igreja e o motor do trem, tudo dentro de um amplificador.

Jimi e o blues: de onde veio, para onde levou

Hendrix não “modernizou” o blues — ele o expandiu. Pegou a arquitetura clássica e abriu claraboias, perfurou o teto, eletrificou a alma, sem trair a planta original. Quando toca “Red House”, ergue um lar; quando dedilha “Hear My Train”, amarra o tempo num nó, faz a guitarra virar locomotiva. Sua herança não é só de virtuosismo: é de imaginação harmônica, de timbre como narrativa, de coragem de levar o blues a lugares insuspeitos sem perder o sotaque.

O lampejo final

“Slow Blues”, aquela fagulha do dia 20, soa hoje como despedida e promessa: despedida de um verão em que o estúdio novo era uma casa recém-pintada e cheia de amigos; promessa de tudo que ainda viria se houvesse tempo. A fita falha, a música para, a vida segue — e nós ficamos com o rastro. No rastro, um ensinamento simples: o blues é a verdade que permanece quando a máquina para.

Para ouvir com o coração aberto

Volte a “Red House”. Cruze “Catfish Blues” com “Voodoo Chile”. Deixe “Hear My Train A Comin’” passar por você como um vento quente. Se ouvir de perto, escutará não apenas um guitarrista genial, mas o próprio blues se lembrando de quem 

Em um minuto e meio, Hendrix disse tudo: o blues era sua casa, e Electric Lady, sua janela aberta para o infinito.


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