Elvin Bishop: o riso do slide e a espinha dorsal do blues

Elvin Bishop: o riso do slide e a espinha dorsal do blues



Elvin Bishop, blues, Can’t Even Do Wrong Right, Hog Heaven, Ace in the Hole — vida, obra e a arte de soar verdadeiro

Elvin Bishop é daqueles músicos que chegam ao palco como quem puxa uma cadeira na varanda e diz: “senta aqui, a gente conversa em doze compassos”. Há algo de leveza, humor e convicção no seu jeito de tocar — uma combinação rara que transforma a guitarra em personagem e o slide em gargalhada boa. Ao longo de décadas, Bishop fez do blues um terreno fértil, ora de estrada poeirenta, ora de salão polido, sempre mantendo um coração blueseiro batendo alto. Em 2014, com Can’t Even Do Wrong Right, ele assina um retorno que soa ao mesmo tempo caseiro e renovado. Mas é importante dizer desde já: se este disco é ápice tardio, há outros momentos igualmente “blueseiros” na discografia, como Hog Heaven (1978) e Ace in the Hole (1995), que fincam estacas profundas na terra do blues — cada um ao seu modo.

Raízes: a formação de um contador de histórias com guitarra na mão

Bishop cresceu escutando os espíritos que habitam o blues: vozes que narram, sussurram, riem e sobrevivem. Da juventude ao mergulho em palcos de clubes esfumaçados, a sua trajetória foi pavimentada pelo respeito às tradições e pela vontade de experimentar. Ele aprendeu cedo que o blues é muito mais do que uma harmonia; é modo de falar, de caminhar, de olhar o mundo. Essa compreensão — de que a música é linguagem viva — viria a definir sua assinatura: frases simples, um toque sorridente e um senso de timing que faz a guitarra parecer conversa franca.

O artesão do tom: fraseado claro, timbre quente, humor como tempero

Há guitarristas que esbanjam velocidade; Elvin Bishop esbanja claridade. O fraseado é direto, o timbre é morno como lâmpada de tubo num boteco, e a mão direita empurra o groove com autoridade. A sua marca, porém, não é apenas sonora; é também narrativa. Bishop gosta de rir de si mesmo, de brincar com as situações, de trazer o público para dentro do palco. Esse humor não dilui o sentimento do blues — ao contrário, o realça, como quem revela luz e sombra no mesmo retrato.

O caminho até o holofote: estrada, parcerias e a construção de uma identidade

Ao longo dos anos, Elvin foi refinando o balanço entre tradição e modernidade. Os riffs conversam com o passado, mas a atitude é sempre de presente. Quando o slide canta, a impressão é que as notas escorregam com alma, contando histórias de bar, de amores tortos e dias de sol. O resultado: uma discografia que alterna registros crus e produções mais cuidadas, sem jamais perder o calor de banda ao vivo — aquele clima de sala de ensaio em que todo mundo se olha e sorri quando o groove cai no lugar certo.




“Hog Heaven” (1978): o vigor cru de bar e estrada

Em Hog Heaven, Elvin Bishop ergue um totem ao blues-rock sem rodeios. A guitarra vem à frente como um convidado falante; a banda responde com músculo e balanço. É disco de urgência e suor, temperado por canções que pedem pista pequena, chão de madeira e um público a palmo do amplificador. “Blueseiro” aqui significa crueza sedutora: o tipo de som que não pede licença para entrar — abre a porta e já começa a tocar. Há risos, há farpas, há rascunhos de madrugada. Há, sobretudo, a assinatura de Bishop: o slide que sorri e a guitarra que conta casos.



“Ace in the Hole” (1995): o veterano que conhece cada esquina do compasso

Quase duas décadas depois, Ace in the Hole apresenta um Elvin Bishop maduro, enxuto e preciso. O que antes era brasa, aqui é brasa controlada: o fogo aquece sem chamuscar, e os arranjos deixam a canção respirar. O disco abraça o groove enraizado, a levada que não precisa correr para chegar. O resultado é um registro que reafirma Bishop como mestre do bom gosto blueseiro: economiza notas, amplia sentidos, entrega climas. É aquele bar no qual o garçom já sabe o que você bebe, e a banda sabe exatamente quando o solo deve terminar.



2014 e a volta saborosa às raízes: “Can’t Even Do Wrong Right”

Então chega 2014 e com ele Can’t Even Do Wrong Right. O título brinca com o azar e a ironia — e a música transforma essa brincadeira em arte de excelência. O disco equilibra composições próprias e releituras com uma naturalidade que só a estrada dá. O que salta aos ouvidos é a espontaneidade organizada: nada é apertado demais, nada é frouxo; tudo soa na medida. É um álbum de banda, de sala quente, de sorrisos trocados entre solos e andamentos. Quando a harmônica entra, é velha amiga voltando para a roda; quando o slide canta, a canção abre a janela e entra sol.

Mais do que um bom trabalho tardio, Can’t Even Do Wrong Right é declaração de princípios: o blues pode ser leve sem ser raso, divertido sem ser bobo, íntimo sem perder a classe. Esse é o Bishop do sorriso no canto da boca, da narrativa que flui, da mão direita que sabe a hora de encostar. É um retorno que não mira o retrovisor — ele dirige no presente, com a estrada inteira à disposição.

Por que “Can’t Even Do Wrong Right” é especial — e por que não está sozinho

Em termos de linguagem, o álbum de 2014 oferece um manual de concisão e balanço. As faixas parecem feitas para o palco, mas funcionam em casa, no carro, no fone; há clareza no arranjo e carisma na execução. Ainda assim, é honesto dizer: o “disco mais blueseiro” de Bishop pode estar em diferentes prateleiras, dependendo de quem ouve. Para alguns, a crueza de Hog Heaven é o porto seguro; para outros, a solidez elegante de Ace in the Hole é o que mais gruda no peito. O que Can’t Even Do Wrong Right faz é juntar pontas: ele conversa com os dois registros e os devolve com a leveza de quem não precisa provar nada.

O coração do repertório: faixas, compositores e um mapa de intenções

Abaixo, um panorama organizado das faixas de Can’t Even Do Wrong Right. A lista ajuda a entender como Bishop intercala originais e clássicos, costurando o disco como quem monta uma roda de conversa em que cada amigo tem sua vez de falar:

  1. Can’t Even Do Wrong Right — (Elvin Bishop)
  2. Blues With A Feeling — (Little Walter)
  3. Old School — (Elvin Bishop)
  4. Let Your Woman Have Her Way — (Elvin Bishop)
  5. No More Doggin’ — (Rosco Gordon)
  6. Everybody’s In The Same Boat — (Elvin Bishop)
  7. Doodlin’ — (Horace Silver)
  8. Right Now Is The Hour — (Elvin Bishop)
  9. Another Mule — (Dave Bartholomew / Pearl King / Fats Domino)
  10. Let’s Go — (Elvin Bishop)

O roteiro revela a dupla lealdade de Bishop: reverência a mestres (Little Walter, Rosco Gordon, Horace Silver, a escola de New Orleans que aparece em “Another Mule”) e afirmação autoral. Esse equilíbrio sustenta o tom “de roda” do álbum — cada faixa traz um gesto de respeito e um gesto de invenção.

Banda, clima e o poder do coletivo: quando o “nós” faz o “eu” brilhar

Não existe bom disco de blues sem a química certa. Em Can’t Even Do Wrong Right, a banda opera como mola mestra: baixo que caminha, bateria que respira, teclas que pontuam, harmônica que fala com a guitarra. Tudo conspira para que o slide de Bishop seja a voz que narra sem atropelar. O humor funciona como lubrificante — você sorri, o corpo balança, e quando vê já está dentro do refrão. O charme do disco está nessa economia precisa: cada instrumento diz o necessário; ninguém fala alto demais; todo mundo ouve todo mundo.

Comparativo “blueseiro”: três portas de entrada para o mesmo coração

  • Hog Heaven (1978): crueza, estrada, suor; o blues-rock de amplificador estalando e refrão com cheiro de bar. Intensidade imediata.
  • Ace in the Hole (1995): veterania, arranjo enxuto, groove firme; o blues de quem domina a pausa e o meio-tempo. Elegância enraizada.
  • Can’t Even Do Wrong Right (2014): espontaneidade organizada, senso de banda, autoralidade afiada; o blues que sorri com classe. Leveza com substância.

Dizer que um é “o mais blueseiro” depende da régua afetiva de cada ouvinte. O que se pode afirmar com segurança é que os três discos formam um eixo — crueza, refinamento e síntese — que explica por que Elvin Bishop é indispensável para entender o blues como linguagem popular e, ao mesmo tempo, sofisticada.

Canções como crônicas: o olhar de Bishop sobre gente, encruzilhadas e alegrias simples

O universo lírico de Bishop não pede passaporte; pede atenção. Nas canções, há personagens que tropeçam e riem, casais que discutem e dançam, trabalhadores que voltam para casa com a cabeça cheia e o pé balançando. O humor é aliado do afeto: quando ele diz que “nem fazer errado ele faz direito”, o ouvinte entende que é assim que se acerta no blues — abraçando o erro como parte da curva. O segredo é esse: humanidade.

O palco como laboratório: a ciência do improviso e o ritual do groove

Se no estúdio Bishop é mestre da parcimônia, no palco ele é sacerdote da interação. Improvisa com a naturalidade de quem gira a lâmpada e ajusta a luz, deixando a melodia aparecer. Não é sobre notas a mais, é sobre frases no lugar certo. E isso a banda entende. Cada show vira um pequeno laboratório em que timing, dinâmica e sorriso fazem ciência do corpo inteiro.

Legado: permanência, caráter e a alegria de continuar tocando

O legado de Elvin Bishop é um lembrete de que o blues é uma arte da permanência. Permanece porque se adapta sem perder a essência, porque conversa com a vida comum sem perder a poesia. Bishop é guardião dessa conversa: um artista que respeita o passado, celebra o presente e abre espaço para o futuro. Ele prova, a cada disco, que o blues é uma casa com muitas janelas — e que todas deixam o sol entrar.

Conclusão: três chaves para o mesmo cofre — por que voltar a Bishop agora

Se você chegou até aqui, leve três chaves no bolso: 1) Hog Heaven para sentir o calor cru; 2) Ace in the Hole para saborear o refino enraizado; 3) Can’t Even Do Wrong Right para celebrar a síntese viva de um artista que segue em movimento. O resto é simples: dá o play, deixa o slide sorrir e acompanha o compasso com as mãos. No fim, você vai perceber que o blues de Elvin Bishop é casa aberta — e a porta está sempre escorada para dentro.

Elvin Bishop equilibra tradição e frescor, com um slide que sorri e uma banda que respira.

“Can’t Even Do Wrong Right” (2014) é síntese madura: espontâneo, autoral e profundamente blueseiro.

“Hog Heaven” (1978) e “Ace in the Hole” (1995) ancoram, cada um a seu modo, a identidade blueseira de Bishop.

Humor, clareza de fraseado e senso de banda são a assinatura eterna do guitarrista.


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Marcos Ottaviano And His Blues Band: 35 Anos de Carreira

Ain’t Done With The Blues: Buddy Guy aos 89 Anos Ainda Toca com o Coração em Chamas

Nuno Mindelis: Blues, não só para o Brasil!