R.L. Burnside: o blues que nunca pediu licença

R.L. Burnside: o blues que nunca pediu licença



Entre as colinas poeirentas do norte do Mississippi, onde o calor pesa no ar como um lamento ancestral, nasceu um homem cuja música ecoa como um soco no estômago e um sussurro no ouvido. Seu nome era Robert Lee Burnside, mas o mundo o conheceu simplesmente como R.L. Burnside. Dono de um som sujo, hipnótico e visceral, ele transformou o blues do Hill Country em uma arma de resistência, transgressão e identidade.

Raízes profundas no Mississippi

R.L. nasceu em 23 de novembro de 1926, em Harmontown, Mississippi, e viveu toda a dureza que se espera de um homem negro naquela região, naquela época. Cresceu plantando algodão, pescando e sobrevivendo como dava. A música não veio como carreira, mas como instinto. Aprendeu a tocar observando vizinhos, imitando os dedos de Fred McDowell e escutando atentamente os boatos que passavam de geração em geração através das cordas de um violão desafinado.

Como tantos outros, tentou a sorte em Chicago nos anos 40, onde se aproximou do blues elétrico de Muddy Waters e companhia. Mas a cidade grande também lhe mostrou o lado cruel da violência urbana: perdeu dois irmãos e um sogro em assassinatos distintos. Desiludido, voltou para o Mississippi e seguiu com a vida como pôde — lavrador de dia, guitarrista nos juke joints à noite.

O blues como desabafo

O som de R.L. é cru, repetitivo, carregado de groove. Não se trata de improviso ou virtuosismo, mas de repetição hipnótica, força rítmica e pulsação ancestral. Diferente do blues do Delta, o Hill Country Blues tem menos acordes, mais transe. É música para dançar com a alma, para beber com o diabo, para rir na cara da miséria.

Com uma voz rouca e guitarra elétrica afinada em open tuning, ele criava um universo sonoro próprio, onde cada música parecia uma estrada sem fim. Suas letras misturavam humor, tragédia, violência e erotismo. Era um contador de histórias e um provocador, com aquele jeito meio debochado de quem já viu de tudo.

O homem e os mitos

Burnside não era santo. Em 1959, matou um homem durante uma briga e passou alguns meses preso na infame Parchman Farm. Falava disso com certa naturalidade, como quem sabe que a vida não oferece muitas escolhas. “Eu não queria matar ele. Mas eu matei. Espero que ele esteja bem no inferno”, costumava dizer, rindo. Era esse tipo de figura — brutalmente honesto, impossível de domar.

Mesmo depois disso, sua vida seguiu no anonimato durante décadas. Tocava em festas, casamentos, bingos e nos bares de chão batido do Mississippi. Sua banda, formada por filhos e netos, carregava o nome de “Sound Machine”, uma verdadeira escola de groove rural e resistência sonora.



Da fazenda para o mundo

Foi só nos anos 90 que o mundo realmente acordou para o talento de Burnside. Ele já passava dos 60 quando assinou com a Fat Possum Records, selo dedicado a resgatar os velhos leões do blues que ainda rugiam no sul profundo. A parceria rendeu discos brutais, como “Too Bad Jim” e o explosivo “A Ass Pocket of Whiskey”, gravado com o Jon Spencer Blues Explosion. Esse encontro entre o blues cru e o rock alternativo fez R.L. virar lenda cult nos EUA e na Europa.

O auge dessa fase veio com “Come On In”, de 1998, onde sua voz e guitarra foram remixadas com batidas eletrônicas e efeitos psicodélicos. Uma afronta para os puristas, mas um deleite para os inquietos. Ele mesmo parecia se divertir com a ideia de ser remixado: “Eu só quero que escutem minha música. Seja do jeito que for”.

Sobrevivência e renascimento

Mesmo após um ataque cardíaco, em 2001, R.L. continuou gravando e se apresentando. Redescobriu o violão, abandonou o álcool e fez um último e poderoso álbum ao vivo: “Burnside on Burnside”. Até o fim, foi irreverente, provocador e fiel à sua própria história.

Faleceu em 1º de setembro de 2005, aos 78 anos, deixando uma família inteira de músicos. Seu neto, Cedric Burnside, segue firme na missão de manter vivo esse blues rude, sincero, indomável. A linhagem está garantida.

Discografia essencial

  • 1968 – Mississippi Delta Blues (Arhoolie)
  • 1980 – Sound Machine Groove
  • 1993 – Bad Luck City
  • 1994 – Too Bad Jim
  • 1996 – A Ass Pocket of Whiskey
  • 1998 – Come On In
  • 2000 – Wish I Was in Heaven Sitting Down
  • 2001 – Burnside on Burnside (ao vivo)
  • 2004 – A Bothered Mind

Curiosidades que merecem um gole de uísque

  • R.L. dizia que aprendeu a tocar vendo os dedos dos outros enquanto limpava peixe.
  • Não usava palheta: seu estilo percussivo vinha direto dos dedos calejados.
  • Era fã de hip hop e curtiu ser sampleado em músicas que nem sabia o nome.
  • Chamava Jon Spencer de “meu menino branco doido”.
  • Disse uma vez que se tivesse aprendido a ler, teria virado pastor — “mas aí não teria graça”.

Conclusão

R.L. Burnside foi um sobrevivente, um incendiário, um griô. O tipo de artista que não pede desculpas nem faz concessões. Representa o blues como ele é: sujo, humano, sincero. Sua música é um retrato sem filtro de uma América que muitos fingem não ver. Mas ali, no calor sufocante do Mississippi, ele mostrou que ainda havia fogo sob as cinzas. E queimou até o fim.


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Marcos Ottaviano And His Blues Band: 35 Anos de Carreira

Nuno Mindelis: Blues, não só para o Brasil!

Jimmy D. Lane: um herdeiro do blues de Chicago