Lurrie Bell: Blues em Carne Viva

Lurrie Bell: Blues em Carne Viva



Já destacamos aqui no blog Todo Dia Um Blues o excelente trabalho de Carey Bell ao lado de Big Walter Horton, dois gigantes da harmônica que ajudaram a moldar o som urbano do blues de Chicago. Para quem ainda não leu essa matéria, vale a pena conferir: Gigantes da Harmônica: Big Walter Horton e Carey Bell.

Mas hoje é dia de olhar para a linhagem que continuou esse legado com sangue, suor e alma. Falamos de Lurrie Bell, filho de Carey, e dono de uma das trajetórias mais intensas, sofridas e, ao mesmo tempo, sublimes do blues moderno. Um homem que parece carregar o peso do mundo nas cordas da guitarra e no timbre arranhado da voz.

Filho do blues

Nascido em 13 de dezembro de 1958, em Chicago, Lurrie C. Bell cresceu no epicentro do blues elétrico, cercado de lendas vivas e ensinado desde cedo a escutar o que há por trás da nota: a dor, a resistência, o desabafo. Com apenas cinco anos já dedilhava sua primeira guitarra, e ao longo da infância conviveu com nomes como Eddie Taylor, Sunnyland Slim e Big Walter Horton, que frequentavam sua casa para tocar e conversar com Carey Bell.

Não foi surpresa que, aos 17 anos, Lurrie já estivesse nos palcos com Willie Dixon, integrando mais tarde o explosivo grupo The Sons of Blues, ao lado de Billy Branch e Freddie Dixon. Aquilo não era apenas um trio. Era uma promessa viva de continuidade, o novo sangue pulsando no coração do velho blues de Chicago.

O talento inquieto

O talento de Lurrie era evidente, mas nem tudo foram flores. Nos anos 1980, ele gravou com Koko Taylor, com seu pai Carey, e lançou o primeiro álbum solo, Everybody Wants to Win. Mas enfrentou problemas de saúde mental, episódios de dependência química, ruas duras e um silêncio que parecia definitivo. A cidade que o formou também o engoliu por um tempo. Seus dedos estavam ali, mas a alma parecia ausente.

Foi só nos anos 1990, após um período sombrio, que Lurrie Bell retornou aos estúdios com força, lançando o intenso Mercurial Son pela Delmark. O disco anunciava que ele não havia desistido. Voltava mais maduro, mais ferido, mas com o blues correndo nas veias como nunca.



Blues in My Soul: o renascimento

O ápice desse renascimento viria anos depois, em 2013, com o álbum Blues in My Soul. Um disco que não apenas marca a volta de Lurrie à gravadora Delmark, mas registra, em 14 faixas, a alma nua de um artista que decidiu enfrentar todos os demônios na base do compasso 12 por 8.

A produção é de Dick Shurman, e o time de músicos conta com sua banda regular: Matthew Skoller (gaita), Roosevelt Purifoy (piano), Melvin Smith (baixo) e Willie "The Touch" Hayes (bateria). O álbum é uma mescla cuidadosa de clássicos revisitados e composições próprias, que criam uma narrativa coesa sobre perda, redenção, fé e sobrevivência.

Uma viagem por dentro do blues

Logo na abertura com "Hey Hey Baby", de T-Bone Walker, já sentimos o groove malemolente, a guitarra dialogando com a gaita e o vocal grave anunciando que não estamos ouvindo um disco qualquer. Em "Blues in My Soul", faixa-título e original de Lurrie, a emoção chega rasgando. É uma canção que se arrasta com intensidade, cada acorde carregando cicatrizes e revelações.

Críticos da American Blues Scene apontaram essa faixa como uma das melhores gravações de Bell em toda a carreira. Uma balada onde a voz falha, treme, mas nunca se cala. E onde o solo de guitarra parece chorar junto com o cantor.

Outros destaques incluem "24 Hour Blues", escrita no dia da morte de Magic Slim, um lamento em forma de blues que toca como um adeus ao velho amigo; "Going Away Baby", de Jimmy Rogers, com ritmo acelerado e arranjos criativos; e "The Blues Never Die", encerrando o disco como um mantra de persistência.

Resenhas em revistas como Blues Magazine (Holanda) destacam que este álbum soa como um retorno às raízes do blues urbano dos anos 1950 e 60, com uma produção crua e honesta. Um trabalho onde não há truques de estúdio, mas sim suor e verdade.

Um homem, uma guitarra e uma ferida aberta

O que torna Lurrie Bell tão singular é a maneira como ele transforma sua história de vida em música. Não há distanciamento. Ele canta como quem revive, toca como quem sangra, improvisa como quem reza. Sua técnica é irrepreensível, mas o que mais impressiona é o peso emocional de cada performance.

O blues, em Lurrie, não é gênero musical. É cura. É um modo de expurgar a dor, de manter a sanidade, de reconstruir pontes internas. Ele mesmo declarou em entrevistas que a música o salvou, o tirou das ruas e deu propósito à sua luta.

Legado e continuidade

Ao longo das décadas, Lurrie gravou mais de 50 álbuns, entre trabalhos solo e colaborações. Venceu prêmios como o Blues Music Award e foi indicado ao Grammy em 2016 pelo disco Can’t Shake This Feeling. Mas seu verdadeiro legado está nas apresentações ao vivo: clubes em Chicago, festivais na Europa, shows pequenos com plateias hipnotizadas.

Em 2024, lançou ao lado do saxofonista Frank Catalano o disco Set Me Free, um cruzamento entre o blues tradicional e o jazz urbano, que reafirma sua inquietude criativa e capacidade de se reinventar sem trair as origens.

O blues não morreu

Como sempre dizemos por aqui, em tempos de algoritmos e hits instantâneos, ouvir Lurrie Bell é um mergulho em outra dimensão. Uma onde o tempo se arrasta, os sentimentos são densos, e a música ainda carrega significado. Ele é, como poucos, um canal direto com a essência do blues: sofrer, transformar e seguir em frente.

Se você ainda não ouviu "Blues in My Soul", pare agora e mergulhe nessa jornada. Porque ali está tudo o que o blues pode ser: uma cicatriz exposta, um grito contido, um sussurro de esperança vindo das cordas de uma guitarra e da alma de um homem que, apesar de tudo, ainda tem o blues no coração.


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