Homesick James – A guitarra errante do blues de alma livre

Homesick James – A guitarra errante do blues de alma livre



Entre mitos, datas contraditórias e acordes escorregadios, nasceu e viveu um dos grandes andarilhos do blues: Homesick James. Um nome que soa como um estado de espírito — saudade de casa, da terra, do tempo — e que representa como poucos a fusão do blues rural com o fervor elétrico de Chicago. Não há como entendê-lo em linha reta, porque ele próprio era tortuoso como seu slide sobre as cordas. Mas seu legado permanece intacto: um grito rouco vindo das entranhas do Mississippi, ecoando pelas ruas da cidade grande.

As origens envoltas em neblina

A própria certidão de nascimento de Homesick James é um mistério digno das encruzilhadas de Robert Johnson. Teria nascido como William Henderson, ou talvez James Williamson, ou ainda John William Henderson. Os registros apontam para Somerville, Tennessee, e datas entre 1905 e 1914. Mas no blues, o que conta não é o número, é o som. E o som que ele produzia vinha da alma.

Filho de músicos, aprendeu sozinho a tocar guitarra e começou ainda jovem a animar festas e juke joints do sul dos EUA. Era um tempo em que o blues não era carreira, era sobrevivência. Nos anos 1930, já estava em Memphis, e em breve seguiria rumo ao norte, como tantos outros, em direção ao caldeirão sonoro de Chicago.

O blues na bagagem e nos trilhos

Em Chicago, encontrou irmãos de alma: Sonny Boy Williamson II, Sleepy John Estes, Big Joe Williams. Tocou como sideman, muitas vezes sem ser creditado. Sua guitarra rascante, marcada por viradas de tempo inesperadas, já era marca registrada. Mas foi ao lado de outro mestre do slide, o incendiário Elmore James, que Homesick cravou seu nome na história.

Durante quase uma década, tocou ao lado de Elmore em shows e gravações, contribuindo com solos densos e profundos. Reza a lenda que estava com Elmore no dia de sua morte, e que o viu partir enquanto tentava buscar socorro. A conexão entre os dois era tão forte que muitos acreditavam que fossem primos — o que, no blues, é quase um detalhe diante da irmandade sonora que formaram.



Blues on the South Side – um disco de alma exposta

O ano era 1964, e o selo Prestige teve a feliz ideia de registrar Homesick James no auge de sua expressividade. O resultado foi o álbum Blues on the South Side, um disco cru, direto e cheio de espírito.

Logo nas primeiras faixas, como “Gotta Move” e “Lonesome Road Blues”, ele deixa claro que seu blues não é uma releitura domesticada, mas uma reencarnação urbana do velho espírito do Delta. A guitarra escorregadia, a voz com marcas do tempo e a batida irregular compõem um retrato visceral de um homem e seu instrumento.

Blues on the South Side é, em muitos sentidos, um disco autobiográfico, ainda que sem letras confessionais. É na textura das cordas, na irregularidade rítmica, no fraseado livre que ele se desnuda. Como se dissesse: "aqui estou, inteiro, ferido, verdadeiro". Um bluesman sem verniz, mas com alma transbordando.

O blues como caminho e morada

Nos anos seguintes, Homesick seguiu como muitos grandes do blues: respeitado na Europa, ignorado pelo mainstream americano. Tocou em festivais, dividiu palco com lendas, e manteve sua guitarra falante até os anos 1990. Em 1994, lançou o ótimo Goin’ Back in the Times pelo selo Earwig, reafirmando seu compromisso com o blues raiz.

Mas não esperem dele produções refinadas ou canções radiofônicas. Homesick James não pertencia à era do marketing. Ele era do tempo da poeira, do trem, da garrafa de bourbon passada de mão em mão. Seu blues era narrado não por palavras, mas pelo timbre arranhado de sua slide guitar, pelos silêncios que doíam mais que qualquer nota sustenida.

Legado de um andarilho

Homesick James morreu em 2006, em Springfield, Missouri, aos 96 anos — se a data de nascimento que ele escolheu for correta. Partiu como viveu: discreto, fiel ao seu estilo, com o blues na ponta dos dedos.

Não ficou rico, não ganhou Grammy, não estampou capas de revista. Mas influenciou gerações inteiras de guitarristas, foi citado por músicos como inspiração e, acima de tudo, viveu sua arte com uma intensidade rara.

Se o blues é, como dizem, a verdade sem maquiagem, então Homesick James foi um de seus mais sinceros pregadores. Um homem saudoso de uma casa que talvez nunca existiu, mas que encontrou abrigo no som que fazia.

Coloque Blues on the South Side para tocar e feche os olhos. Você vai ouvir não apenas o som de uma guitarra: vai ouvir o rangido da madeira, o vento nas janelas quebradas, o soluço de alguém que perdeu tudo — menos a música.


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