Honeyboy Edwards: A Última Voz do Delta Blues

Honeyboy Edwards: A Última Voz do Delta Blues



No dia 28 de junho, o mundo do blues celebra o nascimento de um de seus últimos guardiões: David “Honeyboy” Edwards. Nascido em 1915 no coração do Mississippi, Honeyboy foi mais do que um músico — foi uma testemunha viva da gênese do blues, um contador de histórias do Delta e um elo direto com figuras lendárias como Robert Johnson e Big Joe Williams.

Das plantações de algodão às esquinas de Chicago

David Edwards veio ao mundo em Shaw, Mississippi, região marcada por pobreza extrema, racismo institucionalizado e trabalho árduo. Ainda menino, aprendeu a tocar violino e guitarra com seu pai, um homem que, apesar das dificuldades, cultivava o gosto pela música.

Aos 14 anos, fugiu de casa e passou a viajar com o bluesman Big Joe Williams, tocando em festas, bares e nas calçadas das pequenas cidades do sul. Foi nesse tempo que ganhou o apelido de “Honeyboy” — dado por mulheres que admiravam seu jeito doce e bem-humorado, mesmo vivendo nas margens da sociedade.

Na década de 1930, o blues ainda era uma expressão crua, essencialmente oral, e Edwards tornou-se parte de uma geração itinerante que carregava o blues como herança e sustento. Ele conheceu e tocou com nomes como Charlie Patton, Son House e, principalmente, Robert Johnson.

Testemunha da lenda: a morte de Robert Johnson

Um dos episódios mais marcantes da vida de Honeyboy foi sua convivência com Robert Johnson. Entre 1936 e 1938, eles viajaram juntos, tocando em esquinas, prostíbulos e juke joints do Delta. Segundo Honeyboy, ele estava com Johnson na noite em que o lendário bluesman foi envenenado, após um show em Greenwood, Mississippi.

Eu disse a ele para não beber da garrafa que o homem entregou, mas Robert não escutava ninguém...”, relatou em sua autobiografia. A história contada por Edwards se tornou uma das fontes mais confiáveis sobre os últimos dias de Johnson, reforçando seu papel não apenas como músico, mas como guardião da memória do blues.

As primeiras gravações e o trabalho com Alan Lomax

Em 1942, o folclorista Alan Lomax gravou Honeyboy Edwards em Clarksdale para a Biblioteca do Congresso dos EUA. Eram registros espontâneos, feitos com o intuito de preservar o folclore afro-americano. Neles, o blues surgia como linguagem da dor, resistência e expressão pessoal.

Edwards cantava sobre prisão, pobreza, solidão e sobrevivência. Uma de suas composições mais tocantes, “Wind Howlin’ Blues”, foi inspirada pelo período em que passou preso no Mississipi por vadiagem — uma acusação comum usada para encarcerar pessoas pretas sem justificativa.

Entre o campo e a cidade: o blues em transformação

Com o passar dos anos, o blues rural migrou para os centros urbanos. Em 1956, Honeyboy se estabeleceu em Chicago, onde testemunhou a transformação do estilo acústico do Delta em um blues mais elétrico e urbano, puxado por nomes como Muddy Waters e Howlin’ Wolf.

Mesmo assim, Edwards manteve sua essência. Preferia o violão de cordas de aço ao peso da guitarra elétrica. Tocava com os dedos, no estilo fingerpicking, e usava o slide com naturalidade, extraindo sons cortantes e emocionais.



O renascimento do blues nos anos 1970

Nos anos 1970, impulsionado pelo interesse crescente de estudiosos e colecionadores de blues, Honeyboy voltou a gravar com regularidade. Em 1979, lançou o disco que se tornaria seu cartão de visitas para as novas gerações: Honeyboy Edwards: Mississippi Delta Bluesman.

O álbum foi lançado pelo selo Smithsonian Folkways e traz gravações feitas entre 1942 e 1979. Trata-se de um documento sonoro riquíssimo, onde sua voz áspera e sua guitarra sincopada transportam o ouvinte para o mundo dos campos de algodão, das ferrovias e das noites mal dormidas do sul dos EUA.

Entre as faixas de destaque estão “Big Fat Mamma”, “Catfish Blues” e “Further On Up the Road” — mas deixe o disco tocar e ouça faixa a faixa pra mergulhar funda na tradição do Delta Blues.

Legado e reconhecimento tardio

Apesar de ter vivido boa parte da vida na obscuridade, Honeyboy passou a receber reconhecimentos importantes a partir dos anos 1990:

  • Indução ao Blues Hall of Fame em 1996
  • Recebeu o National Heritage Fellowship do governo americano em 2002
  • Ganhou o Grammy Lifetime Achievement Award em 2010

Ele também participou do projeto Last of the Great Mississippi Delta Bluesmen, que venceu o Grammy de Melhor Álbum de Blues Tradicional em 2008.

Até os 90 anos de idade, realizava mais de 90 shows por ano, encantando plateias com sua humildade, senso de humor e sabedoria musical. Tornou-se figura respeitada entre músicos jovens, como Derek Trucks, Corey Harris e Joe Bonamassa, que o reverenciavam como um mestre.

Autobiografia: a voz por trás das canções

Em 1997, publicou sua autobiografia, The World Don’t Owe Me Nothing, um título que resume sua filosofia de vida. No livro, Honeyboy relata com detalhes as viagens, os encontros, a pobreza, o racismo e a resistência que moldaram sua trajetória.

Mais do que um relato de músico, trata-se de um documento histórico e humano — uma aula de vida dada por quem viveu na pele as injustiças da América profunda e ainda assim carregou a música como refúgio e libertação.

O fim de uma era

David “Honeyboy” Edwards faleceu em 29 de agosto de 2011, em Chicago, aos 96 anos. Sua morte foi sentida como o encerramento de um capítulo da história da música. Era o último dos bluesmen itinerantes do Delta ainda vivo.

Como escreveu o crítico David Whiteis: “Com a partida de Honeyboy, o blues perdeu sua última testemunha ocular dos dias primordiais. Mas suas canções, sua fala, sua memória — essas continuarão ecoando por gerações.

Conclusão

Honeyboy Edwards foi mais do que um músico: foi um cronista de um tempo, um sobrevivente, um mestre da simplicidade. Seu blues não era apenas música, mas uma maneira de existir num mundo hostil. Tocava como quem conta segredos; cantava como quem consola um irmão.

Ao celebrarmos seu nascimento neste 28 de junho, revisitamos sua obra não como uma peça de museu, mas como uma fonte viva de emoção e verdade. Que sua história continue inspirando músicos, ouvintes e todos que enxergam no blues uma expressão de dignidade e humanidade.


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