Reverend Gary Davis: Fé, Blues e a Voz Profética do Piedmont
Reverend Gary Davis: Fé, Blues e a Voz Profética do Piedmont
O blues é uma estrada cheia de figuras marcantes, e poucas são tão singulares quanto Reverend Gary Davis, mestre do fingerpicking, pregador de fé fervorosa e um dos grandes nomes do estilo Piedmont*. Sua música, profundamente espiritual e tecnicamente refinada, influenciou gerações de músicos e se tornou um elo entre o gospel, o blues e o folk americano.
A vida de Reverend Gary Davis: entre a luz e a escuridão
Nascido em 30 de abril de 1896, em Laurens, Carolina do Sul, Gary Davis perdeu a visão ainda criança. Criado em uma região profundamente marcada pela religião e pelos cânticos espirituais afro-americanos, Davis aprendeu a tocar violão autodidaticamente, desenvolvendo uma técnica única baseada em dedilhados complexos – marca registrada do estilo Piedmont, comum na região sudeste dos Estados Unidos.
Na juventude, tocava blues e rags nas ruas e festas, mas foi nos anos 1930, após sua ordenação como pastor batista, que sua música tomou um rumo mais espiritual. A partir de então, Gary Davis abandonou os blues “seculares” para se dedicar a canções religiosas. Sua fé cristã se tornou inseparável da sua arte, e ele passou a ser conhecido como Reverend Gary Davis.
Harlem Street Singer: um marco do blues gospel
Radicado no Harlem, em Nova York, Davis gravou seu álbum mais icônico em 1960: "Harlem Street Singer". Produzido por Kenneth Goldstein e gravado pela Folkways Records, o disco é uma das obras-primas do blues gospel. Nele, Davis apresenta algumas de suas interpretações mais poderosas, como:
“Samson and Delilah” – também conhecida como “If I Had My Way”, uma canção originalmente gravada por Blind Willie Johnson, mas que Davis popularizou e transformou em seu hino pessoal;
“Death Don’t Have No Mercy” – uma poderosa meditação sobre a inevitabilidade da morte, depois regravada pelo Grateful Dead;
“I Belong to the Band” – um cântico de exaltação espiritual com forte impacto emocional e rítmico.
A influência de Davis atravessou gêneros e gerações. Músicos como Bob Dylan, Taj Mahal, Ry Cooder, The Grateful Dead, Jorma Kaukonen (Hot Tuna/Jefferson Airplane), e Peter, Paul and Mary beberam diretamente de sua obra.
O ressurgimento nos anos 60 e o Newport Folk Festival
Durante o renascimento da música folk nos anos 1960, o Reverend Gary Davis foi redescoberto por uma nova geração de ouvintes e músicos. Ele se tornou mentor de jovens guitarristas, como Stefan Grossman, Dave Van Ronk e Bob Weir, ensinando pessoalmente suas técnicas complexas de dedilhado.
Sua apresentação no Newport Folk Festival foi um marco nesse renascimento. No palco, com sua voz rouca, violão na mão e a Bíblia no coração, Davis mostrou ao público o poder transcendental da música gospel blues.
A influência de “Samson and Delilah”
Uma das maiores provas da importância de Reverend Gary Davis está na versão de Peter, Paul and Mary para “Samson and Delilah”, presente no álbum In the Wind (1963). Embora a canção tenha sido composta por Blind Willie Johnson, foi a versão de Davis que a tornou amplamente conhecida e acessível ao público folk e pop. Ele transformou um antigo spiritual em uma narrativa viva, com poder narrativo e força musical.
Legado e morte
Reverend Gary Davis faleceu em 5 de maio de 1972, aos 76 anos, deixando um legado profundo. Ele não foi apenas um grande músico; foi um mestre espiritual da música norte-americana, cuja fé moldava cada acorde. Sua técnica de fingerstyle, aliada à força de sua voz e à intensidade emocional de suas letras, o colocam entre os grandes nomes da história do blues e do gospel.
Seus discípulos mantêm viva sua obra, e suas músicas continuam a ser interpretadas e redescobertas, provando que, mesmo depois da morte, Reverend Gary Davis ainda prega – com o poder do blues e da fé.
*O estilo Piedmont é um tipo de blues acústico caracterizado por uma técnica de violão chamada fingerpicking ou dedilhado alternado. Nesse estilo, o músico toca o baixo com o polegar — geralmente em um ritmo constante, imitando o som de um ragtime de piano — enquanto os dedos tocam melodias e acordes nas cordas mais agudas.
Originado na região sudeste dos EUA (os Apalaches e a região do Piedmont, que vai da Virgínia até a Geórgia), o estilo combina influências do blues rural, ragtime, música gospel e folk. É um som mais melódico e rítmico, diferente do blues do Delta, que costuma ser mais cru e percussivo.
Alguns artistas notáveis do estilo Piedmont, além de Reverend Gary Davis, incluem Blind Blake, Blind Boy Fuller, Elizabeth Cotten e Brownie McGhee.
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